Reproduzo artigo do ex-ministro e embaixador Celso Amorim, que
durante muitos anos acompanhou e, a longo de muitas viagens, pode
conhecer bem a personalidade e o comportamento pessoal de Lula. Amorim
não era petista, não era alguém que tivesse feito uma carreira graças ao
ex-presidente. Ao defendê-lo, mas que o respeito e a amizade que
construiu com Lula nestes 15 anos, penso que Amorim se move pela defesa
do Brasil que, sem seu líder, ficaria desamparado, sem referências para
defender a soberania recém construída e já tão cedo ferida de morte.
Lula: líder do povo e homem de Estado
Celso Amorim
Foi com enorme
honra que recebi, em dezembro de 2002, o convite do Presidente Lula
para ser seu Ministro das Relações Exteriores. Diplomata de carreira, eu
fora chanceler de Itamar Franco e havia representado o Brasil,em diversos governos, perante às Nações Unidas, em Nova Iorque, à Organização Mundial do Comércio e outras organizações internacionais em Genebra. Quando recebi o convite, era Embaixador do Brasil junto ao governo britânico.
A opção do presidente recém-eleito por um funcionário de carreira já denotava sua visão sobre como deveria ser conduzida a política externa em seu governo, já que não faltavam, nos próprios quadros
do Partido dos Trabalhadores, pessoas com qualificações e com amplo
conhecimento e experiência na realidade internacional. Mais do que
qualquer outra coisa – uma vez que jamais tivéramos contato direto – , o
Presidente Lula quis significar, com essa opção, que
a política externa do Brasil, sem deixar de ser sensível aos anseios
populares que o levaram ao poder, seria, sobretudo, uma política de
Estado.
Desde logo, percebi que havia grande sintonia em nossas visões. Ao
falar à imprensa no momento em que minha indicação foi anunciada,
limitei-me praticamente a dizer que a política externa seria levada
adiante de forma “ativa e altiva”. Foi esse sentimento, de profundo
respeito pela dignidade do país, ao lado da crença na capacidade do povo
brasileiro de enfrentar desafios, que norteou nossas posições e iniciativas no cenário internacional. A auto-estima substituiu o inexplicável complexo de inferioridade, que, afora alguns momentos excepcionais, costumava marcar a nossa atuação diplomática.
Durante o governo Lula, o Brasil rejeitou acordos comerciais desvantajosos
que se nos queriam impor; trabalhou intensamente pela integração
sul-americana; fortaleceu as relações com os demais países da América
Latina e Caribe; intensificou laços de amizade com a África e os países árabes e
rompeu novos horizontes na formação de fóruns e blocos com as grandes
nações emergentes. Sem hostilizar nossos parceiros do mundo desenvolvido
(ao contrário, criamos uma “parceria estratégica” com a União Europeia e um “diálogo global”com os Estados Unidos), trabalhamos
em favor de um mundo mais multipolar, no qual os interesses do Brasil e
dos países em desenvolvimento como um todo pudessem ser afirmados e respeitados.
Durante as duas gestões do Presidente Lula, o Brasil liderou a criação de uma organização política sul-americana (a Unasul) e esteve à frente da iniciativa da CELAC – Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos. Pela primeira vez em duzentos anos de vida independente foi
possível criar órgãos que representassem o conjunto da América do Sul, e
da América Latina e Caribe, sem qualquer tipo de tutela externa.
O
fórum IBAS (Índia, Brasil e África do Sul)não somente abriu novos caminhos para a cooperação sul-sul como esteve na raiz da criação do BRICS, que se constituiu em importante fator de equilíbrio na ordem econômica internacional, até então dominada pelo G7 (grupo de economias mais ricas). O
Presidente Lula esteve à frente, também, de importantes lutas para
erradicar a fome e a pobreza no mundo e para facilitar o acesso de
populações pobres a tratamentos de saúde.
Sua liderança na reforma das regras do comércio e das finanças internacionais foi amplamente reconhecida, o que se espelhou sobretudo no G20, o grupo das maiores economias, que, para efeitos práticos, substituiu o G7 como principal foro internacional em temas econômico-financeiros.
No plano da paz e da segurança, o Brasil foi chamado
a participar de esforços em prol de uma solução pacífica no Oriente
Médio, como ocorreu no caso da Conferência de Annapolis, em relação ao conflito Israel-Palestina (o Brasil foi um dos três únicos países em desenvolvimento predominantemente islâmicos a participar do encontro). Juntamente com a Turquia, estivemos, em 2010, no
centro de uma importante iniciativa para solucionar o problema em torno
do programa nuclear iraniano, que viria servir de inspiração ao acordo
estabelecido entre as grandes potências e Teerã, em 2015.
Durante os oito anos em que servi diretamente sob as ordens do presidente Lula, pude testemunhar a
admiração que ele inspirava nos estadistas das mais variadas partes do
mundo.
Não seria exagero dizer que, durante esses anos, o Brasil era um
“farol” que apontava o caminho do desenvolvimento em direção a uma
sociedade mais justa e democrática em um mundo política e economicamente
mais equilibrado. Nesses anos, o respeito pelo Brasil atingiu níveis
nunca antes alcançados e a figura do nosso presidente era reverenciada por todos, ricos ou pobres, poderosos ou fracos.
Em
vários momentos, principalmente nas longas viagens ao redor do mundo,
participei de conversas reservadas, em que temas de política
internacional se misturavam com os da situação interna no nosso país.
Durante todos esses momentos, jamais presenciei, da parte do Presidente
Lula, gesto ou palavra que não fosse indicativa de sua absoluta
integridade moral e dedicação aos objetivos maiores do povo brasileiro.
Recordo-me de uma primeira viagem pelo interior do Nordeste, em
que Lula fez questão de mostrar aos seus ministros (a maioria dos quais
oriundos de partes mais bem aquinhoadas do país) a verdadeira realidade
brasileira.
Constatei, com misto de surpresa e espanto,não só a afeição mas também a confiança que o povo pobre do Brasil depositava no líder que acabara de assumir. Há poucas semanas, acompanhei novamente Lula em
um trecho de sua “caravana” àquela região e pude constatar que a mesma
relação de confiança se preservou.
Melhor: foi reforçada pelos avanços
sociais que seu governo trouxe. É, pois, com grande tristeza, que vejo as tentativas daqueles que sempre defenderam privilégios de classe e atitudes de dependência em relação a potências estrangeiras de desconstruir a imagem e a obra daquele que foi, sem dúvida, o maior líder popular que o Brasil já teve.
Como tantos
brasileiros, confio que a justiça, afinal, prevalecerá e que Lula
poderá seguir conduzindo o Brasil no rumo de uma sociedade menos
desigual e de uma posição de respeito, independência e dignidade no
plano internacional.