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Quino - Com o poder na mira

O desenhista argentino Quino no Terraço ItáliaOrmuzd Alves/Folha Imagem


CYNARA MENEZES
da Reportagem Local

Quem o vê, gentil e suave, nem imagina. Joaquín Salvador Lavado, 67, tem uma identidade secreta: é um franco-atirador cujo alvo é o poder. Detrás de seu nome se escondem ainda outros dois que já fazem parte da história das histórias em quadrinhos. Joaquín é o argentino Quino, criador de Mafalda, ícone da reação popular à repressão militar sul-americana nos anos 70.
Quino esteve no Brasil há duas semanas, depois de mais de 15 anos de ausência, para uma palestra no Sesc Consolação, em São Paulo. Recebeu a Folha para uma entrevista -melhor dizendo, um bate-papo- no restaurante Terraço Itália, a não menos famosa panorâmica no topo de um edifício do centro da capital paulista.
Não é fácil entrevistá-lo. Tímido, responde a cada pergunta como quem está envolto em brumas, distraído, sempre indo além do perguntado, recusando-se a ser direto ainda que fosse com o fugidio olhar.
O lado franco-atirador só vem à tona quando imagina que, pela enésima vez, será questionado sobre o porquê de haver deixado de publicar Mafalda há 25 anos.
Ameaça zombeteiramente a repórter com a faca usada para cortar a frugal salada que come, apesar da insistência de seus comensais (o "quadrinhólogo" Álvaro de Moya e a escritora e desenhista Cláudia Lévay) para que se alimente melhor.
A pergunta era outra: por que deixou de desenhar personagens quando parou com Mafalda? O libertário Quino responde que personagens prendem muito -prefere deixar a imaginação viajar em desenhos soltos, à maneira do "grande pai" Saul Steinberg, o genial ilustrador romeno, radicado nos EUA, morto este ano.
Leia a seguir trechos do bate-papo com Quino, sem amarras como seu desenho atual: de quadrinhos a McDonald's, daí à política, dela à tristeza de Portugal e à alegria dos brasileiros... É impossível fazê-lo traçar uma linha reta -pelo menos em uma entrevista.

Folha - Como define o que faz hoje? Não é mais quadrinhos.
Quino -
Não, são desenhos. Sempre tenho esse problema nos hotéis. Quando perguntam a profissão nunca sei o que escrever.

Folha - E o que escreve, afinal?
Quino -
Dibujante (desenhista).
(Nesse momento, diante da insistência de Cláudia Lévay para que Quino coma mais, a repórter diz, em italiano: "Mangia, che te fa bene" -"Come, que te faz bem". Quino comenta que viu "uma rede de restaurantes" em São Paulo com esse nome e fica espantado quando descobre que é um anúncio do McDonald's.)

Folha - Mafalda comeria no McDonald's?
Quino -
(Rindo) Os árabes dizem que você é filho de seu tempo, não de seus pais. Os pais nunca sabem o que será feito de seus filhos.

Folha - O sr. tem filhos?
Quino -
Não, não quis trazer mais loucos para este mundo. E, ainda mais, teriam caído naquela época maldita da repressão. Estariam desaparecidos.

Folha - Quer dizer que seus filhos são Mafalda, Manolito...
Quino -
Tampouco são meus filhos, são desenhos. Como são esses de agora.

Folha - Por que o sr. vive entre Milão e Buenos Aires?
Quino -
Fui embora da Argentina em 76. Ninguém me mandou embora, ninguém me disse "Vamos matá-lo", mas já estavam morrendo vários amigos meus, desaparecendo... Então, tendo um trabalho como o meu, em que posso trabalhar em qualquer parte, era estúpido permanecer ali.
Quis voltar em 79, voltei por um mês. Depois, em 80, voltei por dois meses. E em 83, quando Alfonsin ganhou e se supunha que íamos ter uma democracia...

Folha - E tiveram?
Quino -
Bom, essa democracia que temos aqui, esses países, pobrezinhos... Que podemos fazer?

Folha - Como o sr. vê a situação na América Latina hoje?
Quino -
Mal, muito mal, mas não só na América Latina. Andamos, os seres humanos, preocupadíssimos no final deste século.

Folha - O sr. gosta de Carlos Menem?
Quino -
Menem forma parte dessa política em que não importa a população do país.

Folha - A Argentina pelo menos tem um analfabetismo baixíssimo, enquanto no Brasil a taxa é de 20%.
Quino -
E isso porque vocês tiveram planos de educação belíssimos... Não sei, nesse sentido Cuba me parece excelente.

Folha - Sim, na saúde, na educação. Mas e a liberdade?
Quino -
Sim, a liberdade... A pessoa tem sempre que fazer um pouco de concessões. As conquistas me parecem mais importantes que... Bom, tem sempre que aguentar alguém que te manda.

Folha - O paraíso é Cuba?
Quino -
Não, não diria, porque qualquer país que tem em cima 30 anos de bloqueio -imagine o Japão bloqueado-, o que faz? Não dura nem dez anos. Mas eu gosto muito de Cuba. E o socialismo me atrai como sistema político.
Que tenha fracassado depois de 70 anos, isso não é nada na história da humanidade. Imagine quanta gente se matou tentando voar. Se Leonardo da Vinci tivesse os tecidos, os materiais que existem hoje, o parapente, a asa-delta e tudo isso já existiriam desde 1400 e tanto. Ou seja, por haver matado gente durante três séculos não significa que a aeronáutica seja uma porcaria.

Folha - O que aconteceu com o socialismo, em sua opinião?
Quino -
Como sempre, onde o homem mete a mãozinha estraga. A idéia era genial. Se fosse administrada por outra coisa que não seres humanos...

Folha - O sr. não publica seus livros no Brasil há muito tempo, desde Mafalda...
Quino -
Pensava que chegassem os livros publicados em Portugal.

Folha - São caros, e parece que aqui não gostam de ler em português de Portugal.
Quino -
É muito mais chato, né? Acho os portugueses chatos. É um país triste, Portugal. O fado é uma coisa tristíssima. Bom, o tango tampouco é muito divertido.

Folha - O Brasil é alegre?
Quino -
Visto desde a Argentina, o Brasil é alegríssimo. Não sei desde o Caribe como será.

Folha - E desde aqui mesmo?
Quino -
É normal. As pessoas daqui são muito simpáticas. Um pouco invasoras. Você convida um brasileiro para sua casa, e ele pergunta: "Posso levar algum amigo?" E vêm oito... Não sei como Ziraldo faz para trabalhar rodeado de tantos amigos, um toca violão, outro fala no telefone, outro não faz nada. Ao lado da mesa de trabalho dele!

Folha - Mas Ziraldo também fala muito...
Quino -
É, acho que desenha falando. Eu, se não estou sozinho... Se entra minha mulher eu cubro a página que estou desenhando com o braço.

Folha - O sr. lê quadrinhos?
Quino -
Não. Quando era pequeno, sim. Mas hoje me interessa o humor. Sou incapaz de seguir uma história.

Folha - Às vezes relê Mafalda?
Quino -
Sim, e me pergunto como fiz para que me ocorressem essas coisas. Algumas são boas. Mas a obra completa de ninguém é completamente boa e Mafalda tampouco é toda boa. Como personagem é muito retórica e muito menos interessante que outros.

Folha - Quando o sr. pára de ter personagens também pára de desenhar para crianças.
Quino -
Isso não foi uma coisa que imaginei ou propus. Sempre fiz Mafalda para adultos, o jornal a publicava na página de editoriais. E continua sendo. As crianças entendem agora por causa do volume de informação que têm, da televisão.

Folha - O sr. fez merchandising de Mafalda?
Quino -
Fiz. Você tem que fazer algumas coisas, pelo menos, porque senão te pirateiam continuamente. Mas eu não faria se tivesse que escolher, não tenho espírito de empresário. Tem que ser Maurício de Souza para fazer isso.

Folha - Continua sendo um homem de esquerda?
Quino -
Creio que sim, embora não se saiba muito bem onde a esquerda está hoje em dia.

Folha - Como se define? Socialista, comunista?
Quino -
Sou um franco-atirador. Nunca me filiei a nenhum partido. Claro, se tenho uma página para dizer toda semana o que me der vontade, para que vou me filiar a algum partido, para que me dêem um posto onde possa me agarrar? Eu já o tenho.

Folha - E quem é que está em sua mira?
Quino -
Em geral, o poder. Faça o que faça, qualquer desenhinho, ainda que não pareça político, é político.