Para uma crítica da “questão urbana” contemporânea
significativa em seu ritmo de crescimento populacional: se ao longo dos anos 1970
havia crescido em torno de 2,57 % ao ano, na década seguinte o índice cai para 1,82 %.
O fenômeno comum em todo o Brasil de esgotamento do crescimento das grandes
cidades aparece no Rio de Janeiro ainda mais visível na última década do século XX, ao
apresentar uma estabilização com crescimento irrisório, abaixo de um ponto percentual.
Nas últimas décadas a expansão demográfica do Rio de Janeiro foi sempre
acompanhada por um crescimento das favelas, num ritmo em média duas vezes maior
que o restante da população. O significativo é que mesmo acompanhando a queda nos
índices de crescimento populacional, a população das favelas continua a crescer e
passou a abranger 17,57 % da população carioca em 1991, quando em 1980 totalizava
14,19 % (RIBEIRO e LAGO, 2001, p. 8).
Quais as justificativas para um crescimento das favelas enquanto o crescimento
da população da cidade se estabilizou?
* Geógrafo pela UERJ, mestre em Psicologia Social e doutorando no PPGPS pela UERJ. End. eletrônico:
marcosvelho@hotmail.com
** Geógrafo pela UERJ, mestre em Ciências Sociais e doutorando no CPDA pela UFRRJ. End. eletrônico:
mauralio@bol.com.br
Algumas explicações envolvendo diversas escalas sócio-espaciais podem tentar
dar conta desse complexo fenômeno.
O primeiro aspecto a ser ressaltado é o esgotamento ou o fechamento da
fronteira urbana do Rio de Janeiro e de sua região metropolitana. Com exceção daqueles
terrenos que, graças aos elevados índices alcançados pelo preço da terra, estão seguros
contra invasão e aguardando o melhor momento para investimento imobiliário, não há
mais terreno livre disponível na cidade.
Esse esgotamento da fronteira é visível pelo índice de crescimento populacional
das regiões mais afastadas do Centro do Rio, isto é, Barra da Tijuca, Jacarepaguá e
Campo Grande (todos da Zona Oeste) apareceram, nos anos de 1980 e na década de
1990 como alternativa e válvula de escape para o inchaço do Rio de Janeiro: essas
foram as áreas de maior crescimento no interior do município, apresentando, também, o
maior crescimento da população residente em favelas (Ribeiro e Lago, 2001, p. 148).
Aliado a isso a crise da dívida na década de 1980, o acirramento da dependência
financeira e as elevadas taxas de juros praticadas na década seguinte, se não provocaram
o fim dos programas nacionais de habitação que atingiam a classe média e parte dos
assalariados praticamente inviabilizaram o acesso à moradia para grande parte das
camadas sociais de baixa renda.
A combinação de um mercado exíguo e seu conseqüente efeito de encarecimento
das terras e a crise das (tímidas) políticas governamentais até então existentes para o
acesso à casa própria forçaram a população em condições econômicas precárias a
procurar alternativas nas favelas. Assim,
o crescimento extensivo-periférico, que gerou oportunidades de acesso à casa
própria para amplos segmentos sociais, entrou em colapso, entre outras razões,
pelo encarecimento da terra e pela perda da capacidade de endividamento dos
trabalhadores em geral, atingindo aqueles com menor qualificação e sem
proteção das leis trabalhistas (RIBEIRO e LAGO, 2001, p. 147).
Mas a favela não é apenas solução imediata para o problema da habitação; é
também solução para o acesso a alguns serviços que, mesmo básicos, custam aos
assalariados e trabalhadores informais uma parte significativa de suas rendas, como
água e luz. Como na favela há um fácil acesso informal a esses serviços, uma parte da
população carioca “moradora do asfalto” e que sofre os efeitos imediatos da
precarização social, migra para o morro, para a periferia pobre, em suma, para as
“comunidades”, tentando através da sua entrada no “circuito inferior” driblar os efeitos
da decadência social.
A criação de um circuito inferior nas cidades do mundo subdesenvolvido, antes
de representar apenas a “informalidade” e a “ilegalidade”, respondia por uma verdadeira
economia subterrânea, que atendia necessidades de uma parcela da população que foi
tragada pela violenta explosão urbana e pela incapacidade estrutural das economias e
dos Estados periféricos em “integrá-la” (SANTOS, 1979, p. 44).
Contudo, o contexto histórico que estamos examinando agora não é mais apenas
o da “hipertrofia do setor terciário” nas grandes cidades do Terceiro Mundo, ou da
precarização e da informalidade dos “marginais” subdesenvolvidos. Ainda que as
características mais evidentes sejam muito próximas, principalmente no que se refere à
informalização do trabalho, uma nova fase do desenvolvimento capitalista envolve todo
o mundo, e não apenas o Sul.
Crise estrutural e “giro” na questão urbana
Aquilo que ficou conhecido como “crise da dívida” no caso brasileiro e latinoamericano
é apenas a face monetária e financeira mais visível de um colapso das
políticas desenvolvimentistas dos países periféricos. Essa crise, antes de representar
apenas a falência do projeto de inclusão social, corresponde à emergência e explosão de
contradições intrínsecas do desenvolvimento capitalista, que esbarra em limites
absolutos de seu desenvolvimento. Nas últimas décadas, mais precisamente desde o
esgotamento do boom econômico do pós-guerra ─ cujos marcos são a quebra do padrão
dólar-ouro e o choque do petróleo ─, todos os países industrializados (e não apenas
estes) têm enfrentado dificuldades na manutenção da regulação econômica baseada no
binômio fordismo-keynesianismo. Pesadas burocracias, gastos previdenciários
crescentes, gastos militares e dívida exponencial fizeram com que as políticas
governamentais sofressem fortes ataques conservadores. Contudo, o problema não é
estritamente de ordem administrativa, dado que as dificuldades enfrentadas pelo Estado
repercutem as próprias dificuldades do investimento capitalista, que encontrou um
obstáculo intransponível para a sua expansão: como pela primeira vez na história
capitalista a capacidade de racionalização dos processos produtivos é maior do que a
expansão desencadeada no mercado, o crescimento econômico tem significado
ampliação do desemprego.
No que toca à questão urbana propriamente dita, a crise do Estado representa o
fim dos grandes projetos de planejamento urbano e a exclusão do financiamento dos
planos de reforma urbana de qualquer pauta governamental. E é exatamente na década
de 1970 que ocorre uma mudança no modo como os Estados tratam do “problema
favela”, verificável em termos mundiais mas com singularidades próprias à cada região
e país. De um problema social e urbano a ser resolvido, a favela comparece como uma
“solução” para o problema da moradia, e agora não apenas como uma solução para os
seus habitantes, mas também para os órgãos públicos, que se limitam a fornecer infraestrutura
básica.
A emergência de governos neoliberais nos países do centro capitalista, a
administração mundial das dívidas públicas por órgãos como o FMI e o Banco Mundial
e a própria incapacidade dos países do Terceiro Mundo, em especial da América Latina,
fomentaram uma série de modificações no “plano” de enfrentamento do problema da
favelização nas grandes cidades. Não apenas os “planos de ajustes estruturais”, mas os
pacotes econômicos de aperto fiscal, a organização e popularidade da ideologia das
ONGs, o discurso do livre-empreendimento e por fim a teoria social foi envolvida por
novas propostas que buscavam minimizar o problema habitacional ─ o desejo de
“resolver” o problema foi visto como arrogante e utópico demais ─ através da mera
manutenção das moradias já existentes, melhoria nas suas condições, nos equipamentos
urbanos das favelas e, o mais importante, a garantia da posse através da formalização e
legalização. Mike Davis apreendeu como poucos o ambiente que envolveu toda essa
mudança de paradigma:
Melhorar as favelas em vez de substituí-las tornou-se a meta menos ambiciosa
da intervenção pública e privada. Em vez da reforma estrutural da pobreza
urbana imposta de cima para baixo, como havia sido tentado pelas democracias
sociais da Europa no pós-guerra e defendido pelos líderes revolucionáriosnacionalistas
da geração dos anos 1950, a nova sabedoria do final da década de
1970 e início da de 1980 exigia que o Estado se aliasse a doadores
internacionais e, depois, a ONGs para tornar-se um “capacitador” dos pobres.
Em sua primeira iteração, a nova filosofia do Banco Mundial (...) insistia numa
abordagem de oferta de “lotes urbanizados” (fornecimento de infra-estrutura
básica de água e esgoto e obras de engenharia civil) a fim de ajudar a
racionalizar e melhorar as habitações construídas pelos próprios moradores.
Entretanto, no final da década de 1980, o Banco Mundial defendia a
privatização da oferta de habitações já prontas, e logo tornou-se o megafone
institucional mais poderoso dos programas [que advogam] soluções
microempresariais para a pobreza urbana (2006, pp. 79-80).
A mudança no modo de tratar da questão urbana está atrelada ao conjunto da
“virada cultural” da filosofia e teoria social das últimas décadas: os projetos de reforma
urbana, remoção, reordenamento viário e territorial, sejam eles de inspiração socialistas
ou fascistas ou aqueles realizados em Estados democráticos, são todos tratados como
“autoritários”, como soluções traumáticas para a questão urbana e, por isso, descartados.
No seu lugar entra o discurso sobre a revalorização da cultura popular, do espaço
comunitário, o fortalecimento dos laços sociais desenvolvidos em meio à pobreza, as
“soluções criativas” e até estéticas dos favelados frente às adversidades sociais e
econômicas. Isto é, o elogio “da práxis dos pobres tornou-se uma cortina de fumaça para
revogar compromissos estatais históricos de reduzir a pobreza e o déficit habitacional”
(Davis, 2006, p. 81). O Estado deixa de ser o principal agente responsabilizado pela
solução dos problemas sociais e passa a ser mero co-participante, entre outros, na
capacitação do indivíduo para resolver seus próprios problemas. O resultado disso é que
as formas privadas de resolução do problema da habitação tornam-se o centro das
políticas públicas, que se limitam a outorgar a terceiros a gestão urbana, como o
financiamento privado das habitações, a concessão de obras para empreiteiras, o
fomento à ação das ONGs, enfim, todas as medidas de terceirização e privatização do
enfrentamento do problema habitacional entram na ordem do dia.
O giro no “problema favela” no Rio de Janeiro
No Brasil a mudança na forma de enfrentar a questão urbana, principalmente o
déficit habitacional e o “problema favela” é muito visível, sendo o Rio de Janeiro seu
exemplo privilegiado, pois aqui a crise do Estado e as políticas econômicas neoliberais
transformaram a favela em parte da solução para o problema habitacional, anulando a
imagem cultivada durante décadas de um problema a ser resolvido. Programas em
diversas esferas do Estado (municipal, estadual e federal) colocam a favela no centro de
propostas de assentamento urbano dos grupos sociais mais pobres. Mas algumas
peculiaridades da formação social brasileira, em que historicamente a impessoalidade
das relações de mercado interage com capricho individualizado das relações patriarcais,
complexificam esse capítulo brasileiro da questão urbana.
É verdade que o “problema favela” nunca foi um problema absoluto no caso
brasileiro, isto é, a sua repressão e desmonte dependiam da área em que se localizava.
Com exceção de determinadas áreas nobres e economicamente importantes da cidade do
Rio de Janeiro, a favela não chega a ser um problema de administração urbana ou um
problema social, pois, longe da vista, são toleradas e até celebradas de maneira
culturalista por parte da intelectualidade. Por isso é significativo que 70 % de todos os
domicílios removidos das favelas estavam em bairros da Zona Sul ou Tijuca e Méier. Se
afastadas dos terrenos mais valorizados da cidade ou, pelo menos, localizadas de forma
a não saltar à vista, as favelas não são apenas toleradas como até são necessárias.
Maurício de Abreu (1995, p. 131) demonstrou como o deslocamento da questão
social, substituindo como habitação popular os cortiços pelo subúrbio e favelas, foi na
verdade uma espécie de resolução do problema, na medida em que esvaziou o potencial
conflitivo da forma da habitação propriamente dita para o espaço, isto é, houve algo
como que uma distensão graças ao “espalhamento” para além do centro da cidade do
Rio de Janeiro. A dialética negativa do conflito social brasileiro, amortecido pela
convivência da norma com a tolerância à sua infração, não gerou uma solução capaz de
criar uma condição qualitativamente nova para o operário e a classe trabalhadora em
geral ─ o espaço serviu de válvula de escape para resolver os problemas relacionados à
intervenção urbana visando à reestruturação do centro do Rio de Janeiro. O problema da
habitação popular, tensionado pelos conflitos sociais no início do século, girou em falso
em torno de sua própria solução e conseguiu permanecer nos mesmos quadros de
precariedade, mudando apenas de endereço e topografia.
Assim, devido a esse quadro complexo, ao longo do século XX as idéias
conversadoras de remoção direta conviveram também com projetos de criação de
condições mínimas para manter a população já presente nas favelas. No período em que
ocorreu o auge das remoções, justamente durante a ditadura militar, outros objetivos
políticos estavam atrelados às remoções, pois “o ‘remocionismo’ objetivava não apenas
desocupar áreas de grande valor imobiliário, mas também desmantelar a organização
política dos excluídos” (BURGOS, 1999, p. 38).
Já na segunda metade da década de 1970 estavam esgotados os projetos de
remoção e esse objetivo de eliminação política consolidado, tanto que já era possível
enxergar mesmo por parte dos militares ações de regularização e garantia da posse dos
moradores de favelas.
Assim, não foi difícil reconhecer, passados os “anos de chumbo”, que a favela
poderia e deveria ser reconhecida como um espaço de moradia própria, justificável e
legítimo. Principalmente a partir do primeiro governo de Leonel Brizola (1983-1987)
reforça-se a idéia de que é possível converter a favela em área de habitação popular
regular, legalizando a propriedade da terra e criando a infra-estrutura de saneamento. O
governo do PDT transformou em política pública ampla e oficial o que antes era apenas
aleatório ou subentendido: a legitimação da favela como moradia popular. E esta
continuidade é marcada por uma nova conjuntura econômica nacional e mundial:
aceitação, saneamento e legalização é um upgrade, frente à crise econômica mundial e à
incapacidade global de intervenção urbana do Estado, do tratamento dispensado à favela
como o local próprio das camadas sociais mais pobres, assalariados precários e
trabalhadores informais. Ou seja, na falta de uma capacidade de reformulação urbana
radical, a alternativa mais fácil para resolver o problema da habitação popular é
conduzi-lo oficialmente nos moldes do que já vinha sendo feito “espontaneamente” - a
não-solução do problema é a sua solução.
Outro a ser ressaltado é a incapacidade de atuação estatal-policial nos morros
cariocas já nesse período: a década de 1980 marca exatamente o período em que foi
possível ao tráfico de drogas se organizar em facções e ter acesso a armamentos
pesados. O problema do tráfico já estava delineado naquele momento, fato que impedia
qualquer solução fácil para o problema da expansão das favelas. Na aplicação posterior
das mesmas medidas pontuais de reforma das condições habitacionais da favela pela
prefeitura do Rio de Janeiro, através do programa Favela-Bairro, na década de 1990, um
dos objetivos traçados era exatamente facilitar o acesso do poder público às
“comunidades”, através da abertura de ruas e alargamento de vielas e corredores.
Assim, as políticas de saneamento, criação de infra-estrutura e legalização do
governo Brizola ─ cujo Programa de Favelas da Companhia Estadual de Água e
Esgotos (PROFACE) entre 1983 e 1985 levou água e esgoto a cerca de 60 favelas da
cidade do Rio de Janeiro ─ não são apenas políticas “populares”, mais igualmente
realpolitik no sentido mais preciso: se o Estado em crise não pode enfrentar o
“problema favela” de modo radical, proporcionando reforma urbana e reestruturação do
espaço social do Rio de Janeiro, resta a alternativa política e urbanisticamente mais
simples e menos custosa de legitimação e manutenção da favela como moradia popular.
Em certo sentido, portanto, a política urbana “trabalhista” é um anúncio do “Estado
mínimo” em nível estadual e municipal que veríamos encenado nos anos ’90. Não é por
acaso que as ações e declarações do Bando Mundial nesse período já reforçam o papel
que as favelas teriam no novo modo de proceder da política mundial,
Os empréstimos do Banco Mundial para desenvolvimento urbano aumentaram
de meros 10 milhões de dólares em 1972 para mais de 2 bilhões de dólares em
1988. E, entre 1972 e 1990, o Banco ajudou a financiar um total de 116
programas de oferta de lotes urbanizados e/ou de urbanização de favelas em 55
países. É claro que em termos da necessidade isso não passou de uma gota num
balde d’água, mas deu ao Banco enorme influência nas políticas urbanas
nacionais, além de uma relação de patrocínio direto com as ONGs e
comunidades faveladas locais; também permitiu ao Banco impor as suas
próprias teorias como ortodoxia mundial da política urbana (DAVIS, 2006, p.
79).
O reconhecimento da favela e sua expansão
O programa Favela-Bairro implementado na cidade do Rio de Janeiro na década
de 1990 tornou-se a principal manifestação dessa virada no tratamento da questão
urbana e do problema habitacional no Brasil.
O Favela-Bairro é o carro-chefe responsável pelas várias administrações do
prefeito César Maia e o programa conta com variadas fontes de financiamento de seus
projetos de urbanização, dependendo da dimensão da favela, destacando-se o Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID), a Caixa Econômica Federal (CEF), a União
Européia (cujos recursos foram fornecidos a fundo perdido) e fundos da própria
prefeitura.
Implementado desde 1994 em cerca de 105 favelas da cidade do Rio de Janeiro,
o programa oficialmente estabeleceu como seus objetivos, segundo a orientação do
Grupo Executivo de Assentamentos Populares (GAEP), “construir ou complementar a
estrutura urbana principal (saneamento e democratização de acessos) e oferecer as
condições ambientais de leitura da favela como bairro da cidade” (GEAP apud Burgos,
1999, p. 49).
Para seguir esse objetivo geral o programa previa a implantação de rede de água
e esgoto, canalização de canais e valas, abertura de vias de acesso (corredores, ruas e
escadas), regularização fundiária e instalação de serviços públicos municipais (como,
por exemplo, postos de saúde e creches).
Embora esses meios pareçam compor um amplo espectro de realizações, o
programa não reedita os grandes projetos de reforma urbana. Pelo contrário, o Favela-
Bairro segue à risca os “modelos pós-modernos” de intervenção urbana mínima e trata
de reconhecer a favela como um bairro da cidade e não eliminá-la ou substituí-la,
“Portanto nota-se que, ao contrário de outros programas de urbanização de favelas
realizados na cidade (...) o Favela-Bairro tem por princípio intervir o mínimo possível
nos domicílios, definindo-se como um programa eminentemente voltado para a
recuperação de áreas e equipamentos públicos” (BURGOS, 1999, p. 49).
Se observarmos que para a execução do programa foi criada especialmente a
Secretaria de Habitação, parece que uma contradição em termos se estabelece, mas nada
mais equivocado: a mínima intervenção nos domicílios não significa de modo algum
uma negação do Favela-Bairro como programa habitacional. Conforme a versão da
prefeitura, contida no Plano Estratégico da cidade, “a premissa básica do programa é o
reconhecimento do esforço despendido pelas populações de baixa renda na produção de
sua moradia, visando estimulá-lo e complementá-lo” (Plano Estratégico da Cidade do
Rio de Janeiro).
No momento em que ocorre esta legitimação da favela está em curso também
uma expansão da favelização na cidade do Rio de Janeiro. Trata-se de uma situação que
não pode ser analisada apenas pelo aspecto da alteração espacial ou urbana, pois se trata
de uma transformação social complexa, na qual atuam fatores como a precarização das
ocupações, o desemprego, a decadência econômica, a ampliação relativa dos custos de
moradia etc. Todos esses fatores interferem na questão habitacional. A regularização
fundiária vem alimentar a favelização e, aspecto absolutamente novo, vem criar um
mercado de terras no interior das favelas.
Não é por acaso a proliferação de um pequeno mercado habitacional nas favelas:
com a tendência dos projetos minimalistas de reforma urbana em regularizar as
moradias, a transformação das casas, barracos e terrenos em objeto de compra e venda
se consolida, pois mesmo os imóveis não regularizados agora não correm mais o risco
de serem removidos. Os exemplos são variados:
Por uma construção de tijolos sem revestimento, de 4x5 metros, 20 metros
quadrados, portanto, paga-se em Rio das Pedras R$ 320,00 mensais. Se for para
o lado da lagoa, são grandes as possibilidades de afundar na lama. Nesse
espaço, geralmente um quadrilátero de cortinas isola o vaso sanitário e o que
sobra acomoda a vida de quatro pessoas. Na Rocinha um quarto-e-sala chega a
R$ 550,00 (...). Na favela do Vidigal, no Rio, a passagem do Favela-Bairro
valorizou os imóveis e alargou a trilha da especulação imobiliária. Como na
favela do Jacarezinho, onde os aluguéis subiram de R$ 170,00 para R$ 220,00,
ali romperam o teto de R$ 300,00 para R$ 350,00, mesmo preço de um
apartamento de quarto-e-sala no condomínio Parque dos Passarinhos, na estrada
de Jacarepaguá, bairro do Anil (VARGAS, 2003).
Toda essa movimentação demonstra sem dúvida a criatividade da população
pobre no enfrentamento da situação de pobreza, mas revela também a ainda maior
capacidade de acirramento e perpetuação de relações mercantis mesmo em condições de
pobreza extrema: se a formação de um mercado imobiliário no seio das favelas pode
significar a vitória do discurso contemporâneo do “auto-empreendimento”, isso implica
também no escalonamento social ainda mais complexo das condições habitacionais e o
fechamento das possibilidades de moradia definitiva para os mais miseráveis:
Levantamento feito em 2005 mostrou que o preço médio de um apartamento de
dois quartos em Acari, Zona Norte, era de R$ 30 mil, enquanto uma casa de
dois quartos na favela Parque Acari, custava em torno de R$15 mil. Em São
Cristóvão, um imóvel de dois quartos custava em média R$60 mil, enquanto
uma casa com dois dormitórios na favela do Tuiutí beira os R$20 mil (...) Com
custos cada vez mais elevados, o mercado de locação em favelas tem crescido
muito nos últimos anos. Enquanto em 2002 o aluguel representava 12% das
transações de imóveis, em 2005 essa proporção subiu para quase 30%.
(RAMALHO, 2006).
Se a população do Rio de Janeiro está se encaminhando gradualmente para as
favelas, não é menos verdadeiro que um fenômeno concomitante e complementar está
ocorrendo: a favela está descendo o morro e ocupando o asfalto, isto é, em várias áreas
da cidade a decadência dos equipamentos públicos, a desestruturação do espaço urbano,
a degradação urbanística está convertendo bairros em favelas.
Os limites à expansão imobiliária geraram uma situação tão grave que a
população mais miserável, enfrentando o mercado imobiliário formal ou informal que
está elevando os preços e os aluguéis nas favelas, não tem outra alternativa a não ser
expandi-la rumo ao asfalto. Enquanto a cidade apresentava uma expansão urbana
extensiva (rumo aos terrenos mais afastados e de baixo preço) e intensiva (nas áreas
mais valorizadas via verticalização) a favela era alternativa e complemento à expansão
da malha urbana regular. Com o esgotamento urbano e o empobrecimento da população
carioca, a favela volta seu caminho para o “asfalto” e começa a “fagocitar” a cidade.
Nos últimos anos pequenas favelas, conjuntos de casas de alvenaria sem revestimento,
as vezes sem colunas e vigas, ou simplesmente barracos de madeiras foram erguidos em
variadas áreas livres da cidade.
Assim, uma favela se expandiu para a área de calçada da Av. Martin Luther
King, acompanhando o muro do CEASA, entre os bairros de Colégio e Irajá. Os muros
da linha do metrô também têm servido de apoio para favelas e moradias extremamente
precárias, que são erguidas ao longo de toda a Linha 2. Em Tomás Coelho, o viaduto
sobre a linha do metrô também teve as calçadas ocupadas por barracos e em Benfica a
favela de Manguinhos já ocupa parte da rua Leopoldo Bulhões. Galpões e fábricas
fechadas em vários bairros atravessados pelo Complexo do Alemão têm suas instalações
divididas por moradores, seus terrenos divididos por paredes que constituem
condomínios irregulares ─ as diversas favelas que compõem o complexo estão
provocando uma espécie de conurbação e digerindo os bairros que se situam nos seus
interstícios.
Um morador da Penha, testemunha da expansão da Vila Cruzeiro sobre as ruas
do bairro, conseguiu resumir em uma expressão todo esse caminho invertido do
desenvolvimento urbano do Rio de Janeiro: “Enquanto a prefeitura faz o Favela-Bairro,
a gente vira o Bairro-Favela” (LARA, 2003).
Referências:
ABREU, Maurício de. “Habitação popular, forma urbana e transição para o capitalismo
industrial” In: BECKER, Bertha K. et al.. (Org.). Geografia e meio ambiente no
Brasil. São Paulo/Rio de Janeiro: Hucitec/Comissão Nacional do Brasil da União
Geográfica Internacional, 1995, pp. 118-135.
BURGOS, Marcelo Baumann. “Dos Parques Proletários ao Favela-Bairro – as políticas
públicas nas favelas do Rio de Janeiro” In ZALUAR, Alba; ALVITO, Marcos. Um
Século de Favela. Rio de Janeiro: FGV, 1999. pp.25-60.
DAVIS, Mike. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006.
ERTHAL, João Marcello; DIAS, Mauricio. Batalha no Alemão. In: CartaCapital, 4 de
julho de 2007.
LARA, Douglas. Quando o bairro vira favela. Jornal O Globo, 10 de novembro de
2003.
LEEDS, Anthony, LEEDS, Elizabeth. A sociologia do Brasil urbano. Rio de Janeiro :
Jorge Zahar, 1978.
PLANO ESTRATÉGICO DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. Disponível em:
http://www.rio.rj.gov.br/planoestrategico/old/plano93_96/entrada.html.
RAMALHO, Marina. Imóveis em favelas são concorridos no mercado informal.
Boletim da FAPERJ, 31 de agosto de 2006. Disponível em: <http://www.faperj.br/
boletim_interna.phtml?obj_id=3093>. Acesso em 09/10/06.
RIBEIRO, Luiz César de Queiroz, LAGO, Luciana Corrêa do. A divisão favela-bairro
no espaço social do Rio de Janeiro. XXIV Encontro anual da Anpocs, GT 07, Seção
II, pp. 01-23, 2000.
RIBEIRO, Luiz César de Queiroz, LAGO, Luciana Corrêa do. A oposição favela-bairro
no espaço social do Rio de Janeiro. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, 15(1), pp.
144-154, 2001.
SANTOS, Milton. O espaço dividido. Os dois circuitos da economia urbana dos países
subdesenvolvidos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979.
VARGAS, Xico. Os brasileiros da riqueza invisível. NoMínimo, 24 de novembro de
2003. Disponível em: <http://www.consciencia.net/2003/12/12/xico1.html>. Acesso
em 24/11/03.
Marcos Rodrigues Alves Barreira *
Maurilio Lima Botelho**
Maurilio Lima Botelho**
Resumo: Partindo dos dados que demonstram o crescimento absoluto e relativo da população residente em favelas no município do Rio de Janeiro, o presente trabalho propõe interpretar a mudança qualitativa no tratamento do “problema favela” ocorrido nas décadas de 1980/1990, quando os projetos de remoção foram progressivamente substituídos por propostas pontuais de estruturação e formalização das comunidades.
Nas décadas de 1970 e 1980 a cidade do Rio de Janeiro apresenta uma quedasignificativa em seu ritmo de crescimento populacional: se ao longo dos anos 1970
havia crescido em torno de 2,57 % ao ano, na década seguinte o índice cai para 1,82 %.
O fenômeno comum em todo o Brasil de esgotamento do crescimento das grandes
cidades aparece no Rio de Janeiro ainda mais visível na última década do século XX, ao
apresentar uma estabilização com crescimento irrisório, abaixo de um ponto percentual.
Nas últimas décadas a expansão demográfica do Rio de Janeiro foi sempre
acompanhada por um crescimento das favelas, num ritmo em média duas vezes maior
que o restante da população. O significativo é que mesmo acompanhando a queda nos
índices de crescimento populacional, a população das favelas continua a crescer e
passou a abranger 17,57 % da população carioca em 1991, quando em 1980 totalizava
14,19 % (RIBEIRO e LAGO, 2001, p. 8).
Quais as justificativas para um crescimento das favelas enquanto o crescimento
da população da cidade se estabilizou?
* Geógrafo pela UERJ, mestre em Psicologia Social e doutorando no PPGPS pela UERJ. End. eletrônico:
marcosvelho@hotmail.com
** Geógrafo pela UERJ, mestre em Ciências Sociais e doutorando no CPDA pela UFRRJ. End. eletrônico:
mauralio@bol.com.br
Algumas explicações envolvendo diversas escalas sócio-espaciais podem tentar
dar conta desse complexo fenômeno.
O primeiro aspecto a ser ressaltado é o esgotamento ou o fechamento da
fronteira urbana do Rio de Janeiro e de sua região metropolitana. Com exceção daqueles
terrenos que, graças aos elevados índices alcançados pelo preço da terra, estão seguros
contra invasão e aguardando o melhor momento para investimento imobiliário, não há
mais terreno livre disponível na cidade.
Esse esgotamento da fronteira é visível pelo índice de crescimento populacional
das regiões mais afastadas do Centro do Rio, isto é, Barra da Tijuca, Jacarepaguá e
Campo Grande (todos da Zona Oeste) apareceram, nos anos de 1980 e na década de
1990 como alternativa e válvula de escape para o inchaço do Rio de Janeiro: essas
foram as áreas de maior crescimento no interior do município, apresentando, também, o
maior crescimento da população residente em favelas (Ribeiro e Lago, 2001, p. 148).
Aliado a isso a crise da dívida na década de 1980, o acirramento da dependência
financeira e as elevadas taxas de juros praticadas na década seguinte, se não provocaram
o fim dos programas nacionais de habitação que atingiam a classe média e parte dos
assalariados praticamente inviabilizaram o acesso à moradia para grande parte das
camadas sociais de baixa renda.
A combinação de um mercado exíguo e seu conseqüente efeito de encarecimento
das terras e a crise das (tímidas) políticas governamentais até então existentes para o
acesso à casa própria forçaram a população em condições econômicas precárias a
procurar alternativas nas favelas. Assim,
o crescimento extensivo-periférico, que gerou oportunidades de acesso à casa
própria para amplos segmentos sociais, entrou em colapso, entre outras razões,
pelo encarecimento da terra e pela perda da capacidade de endividamento dos
trabalhadores em geral, atingindo aqueles com menor qualificação e sem
proteção das leis trabalhistas (RIBEIRO e LAGO, 2001, p. 147).
Mas a favela não é apenas solução imediata para o problema da habitação; é
também solução para o acesso a alguns serviços que, mesmo básicos, custam aos
assalariados e trabalhadores informais uma parte significativa de suas rendas, como
água e luz. Como na favela há um fácil acesso informal a esses serviços, uma parte da
população carioca “moradora do asfalto” e que sofre os efeitos imediatos da
precarização social, migra para o morro, para a periferia pobre, em suma, para as
“comunidades”, tentando através da sua entrada no “circuito inferior” driblar os efeitos
da decadência social.
A criação de um circuito inferior nas cidades do mundo subdesenvolvido, antes
de representar apenas a “informalidade” e a “ilegalidade”, respondia por uma verdadeira
economia subterrânea, que atendia necessidades de uma parcela da população que foi
tragada pela violenta explosão urbana e pela incapacidade estrutural das economias e
dos Estados periféricos em “integrá-la” (SANTOS, 1979, p. 44).
Contudo, o contexto histórico que estamos examinando agora não é mais apenas
o da “hipertrofia do setor terciário” nas grandes cidades do Terceiro Mundo, ou da
precarização e da informalidade dos “marginais” subdesenvolvidos. Ainda que as
características mais evidentes sejam muito próximas, principalmente no que se refere à
informalização do trabalho, uma nova fase do desenvolvimento capitalista envolve todo
o mundo, e não apenas o Sul.
Crise estrutural e “giro” na questão urbana
Aquilo que ficou conhecido como “crise da dívida” no caso brasileiro e latinoamericano
é apenas a face monetária e financeira mais visível de um colapso das
políticas desenvolvimentistas dos países periféricos. Essa crise, antes de representar
apenas a falência do projeto de inclusão social, corresponde à emergência e explosão de
contradições intrínsecas do desenvolvimento capitalista, que esbarra em limites
absolutos de seu desenvolvimento. Nas últimas décadas, mais precisamente desde o
esgotamento do boom econômico do pós-guerra ─ cujos marcos são a quebra do padrão
dólar-ouro e o choque do petróleo ─, todos os países industrializados (e não apenas
estes) têm enfrentado dificuldades na manutenção da regulação econômica baseada no
binômio fordismo-keynesianismo. Pesadas burocracias, gastos previdenciários
crescentes, gastos militares e dívida exponencial fizeram com que as políticas
governamentais sofressem fortes ataques conservadores. Contudo, o problema não é
estritamente de ordem administrativa, dado que as dificuldades enfrentadas pelo Estado
repercutem as próprias dificuldades do investimento capitalista, que encontrou um
obstáculo intransponível para a sua expansão: como pela primeira vez na história
capitalista a capacidade de racionalização dos processos produtivos é maior do que a
expansão desencadeada no mercado, o crescimento econômico tem significado
ampliação do desemprego.
No que toca à questão urbana propriamente dita, a crise do Estado representa o
fim dos grandes projetos de planejamento urbano e a exclusão do financiamento dos
planos de reforma urbana de qualquer pauta governamental. E é exatamente na década
de 1970 que ocorre uma mudança no modo como os Estados tratam do “problema
favela”, verificável em termos mundiais mas com singularidades próprias à cada região
e país. De um problema social e urbano a ser resolvido, a favela comparece como uma
“solução” para o problema da moradia, e agora não apenas como uma solução para os
seus habitantes, mas também para os órgãos públicos, que se limitam a fornecer infraestrutura
básica.
A emergência de governos neoliberais nos países do centro capitalista, a
administração mundial das dívidas públicas por órgãos como o FMI e o Banco Mundial
e a própria incapacidade dos países do Terceiro Mundo, em especial da América Latina,
fomentaram uma série de modificações no “plano” de enfrentamento do problema da
favelização nas grandes cidades. Não apenas os “planos de ajustes estruturais”, mas os
pacotes econômicos de aperto fiscal, a organização e popularidade da ideologia das
ONGs, o discurso do livre-empreendimento e por fim a teoria social foi envolvida por
novas propostas que buscavam minimizar o problema habitacional ─ o desejo de
“resolver” o problema foi visto como arrogante e utópico demais ─ através da mera
manutenção das moradias já existentes, melhoria nas suas condições, nos equipamentos
urbanos das favelas e, o mais importante, a garantia da posse através da formalização e
legalização. Mike Davis apreendeu como poucos o ambiente que envolveu toda essa
mudança de paradigma:
Melhorar as favelas em vez de substituí-las tornou-se a meta menos ambiciosa
da intervenção pública e privada. Em vez da reforma estrutural da pobreza
urbana imposta de cima para baixo, como havia sido tentado pelas democracias
sociais da Europa no pós-guerra e defendido pelos líderes revolucionáriosnacionalistas
da geração dos anos 1950, a nova sabedoria do final da década de
1970 e início da de 1980 exigia que o Estado se aliasse a doadores
internacionais e, depois, a ONGs para tornar-se um “capacitador” dos pobres.
Em sua primeira iteração, a nova filosofia do Banco Mundial (...) insistia numa
abordagem de oferta de “lotes urbanizados” (fornecimento de infra-estrutura
básica de água e esgoto e obras de engenharia civil) a fim de ajudar a
racionalizar e melhorar as habitações construídas pelos próprios moradores.
Entretanto, no final da década de 1980, o Banco Mundial defendia a
privatização da oferta de habitações já prontas, e logo tornou-se o megafone
institucional mais poderoso dos programas [que advogam] soluções
microempresariais para a pobreza urbana (2006, pp. 79-80).
A mudança no modo de tratar da questão urbana está atrelada ao conjunto da
“virada cultural” da filosofia e teoria social das últimas décadas: os projetos de reforma
urbana, remoção, reordenamento viário e territorial, sejam eles de inspiração socialistas
ou fascistas ou aqueles realizados em Estados democráticos, são todos tratados como
“autoritários”, como soluções traumáticas para a questão urbana e, por isso, descartados.
No seu lugar entra o discurso sobre a revalorização da cultura popular, do espaço
comunitário, o fortalecimento dos laços sociais desenvolvidos em meio à pobreza, as
“soluções criativas” e até estéticas dos favelados frente às adversidades sociais e
econômicas. Isto é, o elogio “da práxis dos pobres tornou-se uma cortina de fumaça para
revogar compromissos estatais históricos de reduzir a pobreza e o déficit habitacional”
(Davis, 2006, p. 81). O Estado deixa de ser o principal agente responsabilizado pela
solução dos problemas sociais e passa a ser mero co-participante, entre outros, na
capacitação do indivíduo para resolver seus próprios problemas. O resultado disso é que
as formas privadas de resolução do problema da habitação tornam-se o centro das
políticas públicas, que se limitam a outorgar a terceiros a gestão urbana, como o
financiamento privado das habitações, a concessão de obras para empreiteiras, o
fomento à ação das ONGs, enfim, todas as medidas de terceirização e privatização do
enfrentamento do problema habitacional entram na ordem do dia.
O giro no “problema favela” no Rio de Janeiro
No Brasil a mudança na forma de enfrentar a questão urbana, principalmente o
déficit habitacional e o “problema favela” é muito visível, sendo o Rio de Janeiro seu
exemplo privilegiado, pois aqui a crise do Estado e as políticas econômicas neoliberais
transformaram a favela em parte da solução para o problema habitacional, anulando a
imagem cultivada durante décadas de um problema a ser resolvido. Programas em
diversas esferas do Estado (municipal, estadual e federal) colocam a favela no centro de
propostas de assentamento urbano dos grupos sociais mais pobres. Mas algumas
peculiaridades da formação social brasileira, em que historicamente a impessoalidade
das relações de mercado interage com capricho individualizado das relações patriarcais,
complexificam esse capítulo brasileiro da questão urbana.
É verdade que o “problema favela” nunca foi um problema absoluto no caso
brasileiro, isto é, a sua repressão e desmonte dependiam da área em que se localizava.
Com exceção de determinadas áreas nobres e economicamente importantes da cidade do
Rio de Janeiro, a favela não chega a ser um problema de administração urbana ou um
problema social, pois, longe da vista, são toleradas e até celebradas de maneira
culturalista por parte da intelectualidade. Por isso é significativo que 70 % de todos os
domicílios removidos das favelas estavam em bairros da Zona Sul ou Tijuca e Méier. Se
afastadas dos terrenos mais valorizados da cidade ou, pelo menos, localizadas de forma
a não saltar à vista, as favelas não são apenas toleradas como até são necessárias.
Maurício de Abreu (1995, p. 131) demonstrou como o deslocamento da questão
social, substituindo como habitação popular os cortiços pelo subúrbio e favelas, foi na
verdade uma espécie de resolução do problema, na medida em que esvaziou o potencial
conflitivo da forma da habitação propriamente dita para o espaço, isto é, houve algo
como que uma distensão graças ao “espalhamento” para além do centro da cidade do
Rio de Janeiro. A dialética negativa do conflito social brasileiro, amortecido pela
convivência da norma com a tolerância à sua infração, não gerou uma solução capaz de
criar uma condição qualitativamente nova para o operário e a classe trabalhadora em
geral ─ o espaço serviu de válvula de escape para resolver os problemas relacionados à
intervenção urbana visando à reestruturação do centro do Rio de Janeiro. O problema da
habitação popular, tensionado pelos conflitos sociais no início do século, girou em falso
em torno de sua própria solução e conseguiu permanecer nos mesmos quadros de
precariedade, mudando apenas de endereço e topografia.
Assim, devido a esse quadro complexo, ao longo do século XX as idéias
conversadoras de remoção direta conviveram também com projetos de criação de
condições mínimas para manter a população já presente nas favelas. No período em que
ocorreu o auge das remoções, justamente durante a ditadura militar, outros objetivos
políticos estavam atrelados às remoções, pois “o ‘remocionismo’ objetivava não apenas
desocupar áreas de grande valor imobiliário, mas também desmantelar a organização
política dos excluídos” (BURGOS, 1999, p. 38).
Já na segunda metade da década de 1970 estavam esgotados os projetos de
remoção e esse objetivo de eliminação política consolidado, tanto que já era possível
enxergar mesmo por parte dos militares ações de regularização e garantia da posse dos
moradores de favelas.
Assim, não foi difícil reconhecer, passados os “anos de chumbo”, que a favela
poderia e deveria ser reconhecida como um espaço de moradia própria, justificável e
legítimo. Principalmente a partir do primeiro governo de Leonel Brizola (1983-1987)
reforça-se a idéia de que é possível converter a favela em área de habitação popular
regular, legalizando a propriedade da terra e criando a infra-estrutura de saneamento. O
governo do PDT transformou em política pública ampla e oficial o que antes era apenas
aleatório ou subentendido: a legitimação da favela como moradia popular. E esta
continuidade é marcada por uma nova conjuntura econômica nacional e mundial:
aceitação, saneamento e legalização é um upgrade, frente à crise econômica mundial e à
incapacidade global de intervenção urbana do Estado, do tratamento dispensado à favela
como o local próprio das camadas sociais mais pobres, assalariados precários e
trabalhadores informais. Ou seja, na falta de uma capacidade de reformulação urbana
radical, a alternativa mais fácil para resolver o problema da habitação popular é
conduzi-lo oficialmente nos moldes do que já vinha sendo feito “espontaneamente” - a
não-solução do problema é a sua solução.
Outro a ser ressaltado é a incapacidade de atuação estatal-policial nos morros
cariocas já nesse período: a década de 1980 marca exatamente o período em que foi
possível ao tráfico de drogas se organizar em facções e ter acesso a armamentos
pesados. O problema do tráfico já estava delineado naquele momento, fato que impedia
qualquer solução fácil para o problema da expansão das favelas. Na aplicação posterior
das mesmas medidas pontuais de reforma das condições habitacionais da favela pela
prefeitura do Rio de Janeiro, através do programa Favela-Bairro, na década de 1990, um
dos objetivos traçados era exatamente facilitar o acesso do poder público às
“comunidades”, através da abertura de ruas e alargamento de vielas e corredores.
Assim, as políticas de saneamento, criação de infra-estrutura e legalização do
governo Brizola ─ cujo Programa de Favelas da Companhia Estadual de Água e
Esgotos (PROFACE) entre 1983 e 1985 levou água e esgoto a cerca de 60 favelas da
cidade do Rio de Janeiro ─ não são apenas políticas “populares”, mais igualmente
realpolitik no sentido mais preciso: se o Estado em crise não pode enfrentar o
“problema favela” de modo radical, proporcionando reforma urbana e reestruturação do
espaço social do Rio de Janeiro, resta a alternativa política e urbanisticamente mais
simples e menos custosa de legitimação e manutenção da favela como moradia popular.
Em certo sentido, portanto, a política urbana “trabalhista” é um anúncio do “Estado
mínimo” em nível estadual e municipal que veríamos encenado nos anos ’90. Não é por
acaso que as ações e declarações do Bando Mundial nesse período já reforçam o papel
que as favelas teriam no novo modo de proceder da política mundial,
Os empréstimos do Banco Mundial para desenvolvimento urbano aumentaram
de meros 10 milhões de dólares em 1972 para mais de 2 bilhões de dólares em
1988. E, entre 1972 e 1990, o Banco ajudou a financiar um total de 116
programas de oferta de lotes urbanizados e/ou de urbanização de favelas em 55
países. É claro que em termos da necessidade isso não passou de uma gota num
balde d’água, mas deu ao Banco enorme influência nas políticas urbanas
nacionais, além de uma relação de patrocínio direto com as ONGs e
comunidades faveladas locais; também permitiu ao Banco impor as suas
próprias teorias como ortodoxia mundial da política urbana (DAVIS, 2006, p.
79).
O reconhecimento da favela e sua expansão
O programa Favela-Bairro implementado na cidade do Rio de Janeiro na década
de 1990 tornou-se a principal manifestação dessa virada no tratamento da questão
urbana e do problema habitacional no Brasil.
O Favela-Bairro é o carro-chefe responsável pelas várias administrações do
prefeito César Maia e o programa conta com variadas fontes de financiamento de seus
projetos de urbanização, dependendo da dimensão da favela, destacando-se o Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID), a Caixa Econômica Federal (CEF), a União
Européia (cujos recursos foram fornecidos a fundo perdido) e fundos da própria
prefeitura.
Implementado desde 1994 em cerca de 105 favelas da cidade do Rio de Janeiro,
o programa oficialmente estabeleceu como seus objetivos, segundo a orientação do
Grupo Executivo de Assentamentos Populares (GAEP), “construir ou complementar a
estrutura urbana principal (saneamento e democratização de acessos) e oferecer as
condições ambientais de leitura da favela como bairro da cidade” (GEAP apud Burgos,
1999, p. 49).
Para seguir esse objetivo geral o programa previa a implantação de rede de água
e esgoto, canalização de canais e valas, abertura de vias de acesso (corredores, ruas e
escadas), regularização fundiária e instalação de serviços públicos municipais (como,
por exemplo, postos de saúde e creches).
Embora esses meios pareçam compor um amplo espectro de realizações, o
programa não reedita os grandes projetos de reforma urbana. Pelo contrário, o Favela-
Bairro segue à risca os “modelos pós-modernos” de intervenção urbana mínima e trata
de reconhecer a favela como um bairro da cidade e não eliminá-la ou substituí-la,
“Portanto nota-se que, ao contrário de outros programas de urbanização de favelas
realizados na cidade (...) o Favela-Bairro tem por princípio intervir o mínimo possível
nos domicílios, definindo-se como um programa eminentemente voltado para a
recuperação de áreas e equipamentos públicos” (BURGOS, 1999, p. 49).
Se observarmos que para a execução do programa foi criada especialmente a
Secretaria de Habitação, parece que uma contradição em termos se estabelece, mas nada
mais equivocado: a mínima intervenção nos domicílios não significa de modo algum
uma negação do Favela-Bairro como programa habitacional. Conforme a versão da
prefeitura, contida no Plano Estratégico da cidade, “a premissa básica do programa é o
reconhecimento do esforço despendido pelas populações de baixa renda na produção de
sua moradia, visando estimulá-lo e complementá-lo” (Plano Estratégico da Cidade do
Rio de Janeiro).
No momento em que ocorre esta legitimação da favela está em curso também
uma expansão da favelização na cidade do Rio de Janeiro. Trata-se de uma situação que
não pode ser analisada apenas pelo aspecto da alteração espacial ou urbana, pois se trata
de uma transformação social complexa, na qual atuam fatores como a precarização das
ocupações, o desemprego, a decadência econômica, a ampliação relativa dos custos de
moradia etc. Todos esses fatores interferem na questão habitacional. A regularização
fundiária vem alimentar a favelização e, aspecto absolutamente novo, vem criar um
mercado de terras no interior das favelas.
Não é por acaso a proliferação de um pequeno mercado habitacional nas favelas:
com a tendência dos projetos minimalistas de reforma urbana em regularizar as
moradias, a transformação das casas, barracos e terrenos em objeto de compra e venda
se consolida, pois mesmo os imóveis não regularizados agora não correm mais o risco
de serem removidos. Os exemplos são variados:
Por uma construção de tijolos sem revestimento, de 4x5 metros, 20 metros
quadrados, portanto, paga-se em Rio das Pedras R$ 320,00 mensais. Se for para
o lado da lagoa, são grandes as possibilidades de afundar na lama. Nesse
espaço, geralmente um quadrilátero de cortinas isola o vaso sanitário e o que
sobra acomoda a vida de quatro pessoas. Na Rocinha um quarto-e-sala chega a
R$ 550,00 (...). Na favela do Vidigal, no Rio, a passagem do Favela-Bairro
valorizou os imóveis e alargou a trilha da especulação imobiliária. Como na
favela do Jacarezinho, onde os aluguéis subiram de R$ 170,00 para R$ 220,00,
ali romperam o teto de R$ 300,00 para R$ 350,00, mesmo preço de um
apartamento de quarto-e-sala no condomínio Parque dos Passarinhos, na estrada
de Jacarepaguá, bairro do Anil (VARGAS, 2003).
Toda essa movimentação demonstra sem dúvida a criatividade da população
pobre no enfrentamento da situação de pobreza, mas revela também a ainda maior
capacidade de acirramento e perpetuação de relações mercantis mesmo em condições de
pobreza extrema: se a formação de um mercado imobiliário no seio das favelas pode
significar a vitória do discurso contemporâneo do “auto-empreendimento”, isso implica
também no escalonamento social ainda mais complexo das condições habitacionais e o
fechamento das possibilidades de moradia definitiva para os mais miseráveis:
Levantamento feito em 2005 mostrou que o preço médio de um apartamento de
dois quartos em Acari, Zona Norte, era de R$ 30 mil, enquanto uma casa de
dois quartos na favela Parque Acari, custava em torno de R$15 mil. Em São
Cristóvão, um imóvel de dois quartos custava em média R$60 mil, enquanto
uma casa com dois dormitórios na favela do Tuiutí beira os R$20 mil (...) Com
custos cada vez mais elevados, o mercado de locação em favelas tem crescido
muito nos últimos anos. Enquanto em 2002 o aluguel representava 12% das
transações de imóveis, em 2005 essa proporção subiu para quase 30%.
(RAMALHO, 2006).
Se a população do Rio de Janeiro está se encaminhando gradualmente para as
favelas, não é menos verdadeiro que um fenômeno concomitante e complementar está
ocorrendo: a favela está descendo o morro e ocupando o asfalto, isto é, em várias áreas
da cidade a decadência dos equipamentos públicos, a desestruturação do espaço urbano,
a degradação urbanística está convertendo bairros em favelas.
Os limites à expansão imobiliária geraram uma situação tão grave que a
população mais miserável, enfrentando o mercado imobiliário formal ou informal que
está elevando os preços e os aluguéis nas favelas, não tem outra alternativa a não ser
expandi-la rumo ao asfalto. Enquanto a cidade apresentava uma expansão urbana
extensiva (rumo aos terrenos mais afastados e de baixo preço) e intensiva (nas áreas
mais valorizadas via verticalização) a favela era alternativa e complemento à expansão
da malha urbana regular. Com o esgotamento urbano e o empobrecimento da população
carioca, a favela volta seu caminho para o “asfalto” e começa a “fagocitar” a cidade.
Nos últimos anos pequenas favelas, conjuntos de casas de alvenaria sem revestimento,
as vezes sem colunas e vigas, ou simplesmente barracos de madeiras foram erguidos em
variadas áreas livres da cidade.
Assim, uma favela se expandiu para a área de calçada da Av. Martin Luther
King, acompanhando o muro do CEASA, entre os bairros de Colégio e Irajá. Os muros
da linha do metrô também têm servido de apoio para favelas e moradias extremamente
precárias, que são erguidas ao longo de toda a Linha 2. Em Tomás Coelho, o viaduto
sobre a linha do metrô também teve as calçadas ocupadas por barracos e em Benfica a
favela de Manguinhos já ocupa parte da rua Leopoldo Bulhões. Galpões e fábricas
fechadas em vários bairros atravessados pelo Complexo do Alemão têm suas instalações
divididas por moradores, seus terrenos divididos por paredes que constituem
condomínios irregulares ─ as diversas favelas que compõem o complexo estão
provocando uma espécie de conurbação e digerindo os bairros que se situam nos seus
interstícios.
Um morador da Penha, testemunha da expansão da Vila Cruzeiro sobre as ruas
do bairro, conseguiu resumir em uma expressão todo esse caminho invertido do
desenvolvimento urbano do Rio de Janeiro: “Enquanto a prefeitura faz o Favela-Bairro,
a gente vira o Bairro-Favela” (LARA, 2003).
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