Por Dalmo de Abreu Dallari em 18/09/2012 na edição 712
A cobertura do Poder Judiciário pela imprensa, com noticiário minucioso
e comentários paralelos, é uma prática muito recente, que pode ter
efeitos benéficos em termos de dar maior publicidade a um setor dos
serviços públicos que também está obrigado, como todos os demais, a
tornar públicos os seus atos, seu desempenho administrativo e a
utilização de seus recursos orçamentários.
Entretanto, as decisões judiciais têm várias peculiaridades, entre as
quais está o direito de penetrar na intimidade das pessoas e das
instituições quando isso for necessário para o bom desempenho do
julgador, assim como o fato de que tais decisões, que podem ter
gravíssimas consequências para pessoas, entidades e mesmo para toda a
sociedade, são inevitavelmente influenciadas por uma escala individual
de valores – tudo isso implica a configuração de características
especiais, exclusivas das atividades judiciárias e bem diferentes das
peculiaridades do Legislativo e do Executivo.
Só isso já seria suficiente para que se exigisse da imprensa uma
atenção diferenciada para a cobertura das atividades do Judiciário.
Acrescente-se, ainda, que pelas particularidades do processo de obtenção
e uso de dados, assim como da fundamentação das decisões dos juízes e
tribunais, é indispensável um preparo adequado dos editorialistas e
jornalistas que irão publicar informações e opiniões sobre as atividades
e as decisões do Judiciário, pois além do risco da existência de erros
na matéria divulgada, o que já é altamente reprovável, graves
consequências podem decorrer da divulgação de informações e comentários
errados e mal fundamentados. Nesses casos a publicidade do Judiciário
acarretará mais efeitos nocivos do que benéficos.
Matéria jurídica
O despreparo de importantes órgãos da imprensa para a cobertura do
Judiciário tem ficado evidente, tanto pelo tratamento dado às matérias
quanto pela ocorrência de erros e impropriedades relativamente a
situações e ocorrência pontuais. Assim, por exemplo, num dos mais
importantes órgãos da imprensa brasileira, o jornal O Estado de S.Paulo,
que ultimamente passou a ser muito vigilante quanto às falhas do
Judiciário e muito agressivo nos comentários a elas relativos, foi
publicado, na edição de 22 de julho deste ano, num editorial da página 3
– que é um espaço nobre do jornal –, um comentário que, sob o título “A resistência da toga“, pretendia denunciar a persistência da doença do corporativismo no Judiciário.
Para comprovação do que ali se afirmava foi referida a resistência de
juízes às boas inovações introduzidas pela Emenda Constitucional nº 45,
informando-se, textualmente, para esclarecimento dos leitores, que essa
emenda “entre outras inovações, criou o instituto jurídico do mandado de
injunção. Na época, entidades da magistratura acusaram esse mecanismo
processual – cujo objetivo é agilizar as decisões judiciais, obrigando
os tribunais inferiores a seguir a jurisprudência firmada pelo Supremo
Tribunal Federal – de suprimir as prerrogativas e a autonomia dos juízes
de primeira instância”.
Ora, basta uma simples leitura do artigo 5º, inciso LXXI, da
Constituição para se verificar a absoluta impropriedade da afirmação
constante do editorial. Com efeito, nos termos expressos daquele inciso
constitucional “conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de
norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e
liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à
nacionalidade, à soberania e à cidadania”.
Como fica mais do que evidente, quem escreveu o editorial não tinha
conhecimento do assunto e não houve assessoria nem revisão de algum
conhecedor. Provavelmente, o editorialista tinha ouvido falar que
estavam sendo propostas inovações constitucionais para melhorar o
Judiciário e uma delas dava efeito vinculante a certas decisões do
Supremo Tribunal Federal, obrigando os órgãos do Poder Judiciário a
seguirem a mesma orientação, o que tinha sido mal recebido por alguns
integrantes do Poder Judiciário. Trata-se, neste caso, da súmula
vinculante, prevista entre as competências do Supremo Tribunal Federal
no artigo 103-A da Constituição, inovação que absolutamente nada tem a
ver com o mandado de injunção.
Houve erro evidente do editorialista, mas também ficou evidenciado o
despreparo de um importante órgão da imprensa para a cobertura do
Judiciário. Pode-se imaginar quantos equívocos dessa natureza podem
estar contidos nas informações e nos comentários sobre matéria jurídica,
que pretendem informar e formar os leitores, como se tem considerado
inerente ao papel da imprensa.
Extensão inconstitucional
Há um ponto em que a imprensa poderia promover um sério debate, com
base numa questão jurídica fundamental: por meio da Ação Penal 470,
estão sendo julgados pelo Supremo Tribunal Federal, sem terem passado
por instâncias inferiores, acusados que não tinham cargo público nem
exerciam função pública quando participaram dos atos que deram base à
propositura da ação pelo Ministério Público. Isso ficou absolutamente
evidente no julgamento de acusados ligados ao Banco Rural, que, segundo a
denúncia, sem terem cargo ou função no aparato público, interferiram
para que recursos públicos favorecessem aqueles integrantes de um banco
privado.
Essa questão foi suscitada, com muita precisão, pelo ministro Ricardo
Lewandowski, na fase inicial do julgamento. Entretanto, por motivos que
não ficaram claros, a maioria dos ministros foi favorável à continuação
do julgamento de todos os acusados pelo Supremo Tribunal. No entanto, a
Constituição estabelece expressamente, no artigo 102, os únicos casos em
que o acusado, por ser ocupante de cargo ou função pública de grande
relevância, será julgado originariamente pelo Supremo Tribunal Federal e
não por alguma instância inferior.
No inciso I, dispõe-se, na letra “b”, que o Supremo Tribunal tem
competência para processar e julgar, originariamente, nas infrações
penais comuns, “o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros
do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador Geral da
República”. Em seguida, na letra “c”, foi estabelecida a competência
originária para processar e julgar “nas infrações penais comuns e nos
crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da
Marinha, do Exército e da Aeronáutica, os membros dos Tribunais
Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão
diplomática de caráter permanente”.
Como fica muito evidente, o Supremo Tribunal Federal não tem
competência jurídica para julgar originariamente acusados que nem no
momento da prática dos atos que deram base à denúncia nem agora ocuparam
ou ocupam qualquer dos cargos ou funções enumerados no artigo 102.
Para que se perceba a gravidade dessa afronta à Constituição, esses
acusados não gozam do que se tem chamado “foro privilegiado” e devem ser
julgados por juízes de instâncias inferiores. E nesse caso terão o
direito de recorrer a uma ou duas instâncias superiores, o que amplia
muito sua possibilidade de defesa. Tendo-lhes sido negada essa
possibilidade, poderão alegar, se forem condenados pelo Supremo
Tribunal, que não lhes foi assegurada a plenitude do direito de defesa,
que é um direito fundamental da cidadania internacionalmente consagrado.
E poderão mesmo, com base nesse argumento, recorrer a uma Corte
Internacional pedindo que o Brasil seja compelido a respeitar esse
direito.
A imprensa, que no caso desse processo vem exigindo a condenação, não o
julgamento imparcial e bem fundamentado, aplaudiu a extensão
inconstitucional das competências do Supremo Tribunal e fez referências
muito agressivas ao ministro Lewandowski – que, na realidade, era, no
caso, o verdadeiro guardião da Constituição.
Do Observatório da Imprensa[Dalmo de Abreu Dallari é jurista, professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo