Deu no Correio do Brasil
Por Venício A. de Lima - de São Paulo
A
grande mídia usa como estratégia o bordão da ameaça à liberdade de expressão
para escamotear a realidade da concentração midiática no Brasil
|
Desde a Grécia antiga, a igualdade perante a lei e a liberdade de expressão constituem a base da democracia.
Em fala recente a professora Marilena Chauí reafirmou que uma das
características fundamentais da democracia é constituir uma “forma
sociopolítica definida pelos princípios da isonomia (igualdade dos
cidadãos perante a lei) e da isegoria (direito de todos para expor suas
opiniões, vê-las discutidas, aceitas ou recusadas em público). [Nesta
forma sociopolítica], todos são iguais porque são livres, isto é,
ninguém está sob o poder de outro, uma vez que todos obedecem às mesmas
leis das quais todos são autores (diretamente, numa democracia
participativa; indiretamente, numa democracia representativa)” (Chauí,
2012).
Admitida esta conceituação de democracia, pergunto: a ausência de voz
e de participação – vale dizer, a ausência de isegoria – poderia ser
identificada como uma forma difusa de censura decorrente da estrutura de poder em determinada formação social?
O Parágrafo 2º do artigo 220 do capítulo sobre a Comunicação Social de nossa Constituição reza: “É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.
Descarto, preliminarmente, o que tem sido chamado de “censura
judicial” ou “censura togada” por compartilhar a posição expressa pelo
ex-ministro Eros Grau em julgamento no Supremo Tribunal Federal quando
afirmou: “O juiz está limitado pela lei. O censor não. É descabido falar
em censura judicial. Não há censura. Há aplicação da lei. A imprensa
precisa de uma lei” (RCL 9428).
Pergunto, então: de onde parte a censura? Quem são os censores?
Contrariamente ao “eixo discursivo” dominante na grande mídia,
pretendo argumentar que o Estado não é o único censor. Muitas vezes, nem
sequer o censor mais atuante. E, mais ainda, muitas vezes o Estado pode
e deve ser o garantidor da liberdade de expressão, vale dizer, da
ausência de censura.
Por óbvio, existem vários tipos de censura e diferentes censores.
Há um tipo de censura, por exemplo, que atinge a liberdade da
imprensa e decorre da própria estrutura do mercado das empresas de
mídia. Esse fato vem sendo reconhecido desde a década de 70 do século
passado pelo chamado PICA-Index (Press Independence and Critical
Ability) que registra a independência e a capacidade crítica da mídia. O
PICA-Index incluiu entre seus indicadores as “restrições econômicas”
entendidas como conseqüências da concentração da propriedade ou de
problemas que decorram da instabilidade econômica das empresas
jornalísticas. Por outro lado, o próprio Press Freedom Survey, publicado
anualmente pela ONG liberal Freedom House, trabalha com uma definição
de liberdade da imprensa que inclui variáveis econômicas. Vale dizer,
considera que restrições à liberdade da imprensa podem decorrer de
fatores econômicos alheios à interferência do Estado (Holtz-Bacha,
2004).
Registre-se que a censura da palavra, da expressão é muito anterior à
existência não só de Gutenberg – vale dizer, da possibilidade de
imprimir – como é também anterior à existência da instituição que passou
a ser conhecida como “imprensa” e hoje chamamos de “mídia”.
No caso brasileiro, a ausência de voz e de participação tem sido identificada desde a primeira metade do século 17.
Para descrever a situação em que se encontrava o “Estado do Brasil”
nesse período, o pregador jesuíta Padre Antonio Vieira saúda o recém
chegado vice-rei, Marques de Montalvão, com um de seus famosos sermões, o
da “Visitação de Nossa Senhora”, proferido no dia 2 de julho de 1640.
Vieira recorre ao Evangelho de Lucas e descreve um quadro sombrio da
Terra de Santa Cruz. Afirma ele:
“Bem sabem os que sabem a língua latina, que [a] palavra, infans,
infante, quer dizer o que não fala. Neste estado estava o menino
Batista, quando a Senhora o visitou, e neste esteve o Brasil muitos
anos, que foi, a meu ver, a maior ocasião de seus males. [...] O pior
acidente que teve o Brasil em sua enfermidade foi o tolher-se-lhe a
fala: muitas vezes se quis queixar justamente, muitas vezes quis pedir o
remédio de seus males, mas sempre lhe afogou as palavras na garganta,
ou o respeito, ou a violência; e se alguma vez chegou algum gemido aos
ouvidos de quem o devera remediar, chegaram também as vozes do poder, e
venceram os clamores da razão.”
Para Vieira, portanto, o maior dos males do enfermo Brasil era ter
sido mantido no mesmo estado do infans, infante, isto é, sem fala, sem
voz.
Quatro séculos depois, o grande educador Paulo Freire parte
exatamente desse sermão de Vieira para identificar uma característica
dominante da formação histórica brasileira que chama de “cultura do
silêncio”. Ele sustenta que os séculos de colonização portuguesa
resultaram numa estrutura de dominação à qual corresponde uma totalidade
ou um conjunto de representações e comportamentos. Esse conjunto de
“formas de ser, pensar e expressar” é tanto um reflexo como uma
consequência da estrutura de dominação.
A cultura do silêncio caracteriza a sociedade a que se nega a
comunicação e o diálogo e, em seu lugar, se lhe oferecem “comunicados”,
vale dizer, é o ambiente do tolhimento da voz e da ausência de
comunicação, da incomunicabilidade. Mas não basta ter voz porque o
“mutismo” da “cultura do silêncio” – insiste Freire republicanamente –
“não significa ausência de resposta, mas sim uma resposta que carece de
criticidade”. Na verdade, é necessário que essa voz expresse uma opinião
cidadã formada livremente e que ela seja ouvida no espaço de
deliberação pública e autogoverno (Lima 2011c e 2011b).
Não seria a “cultura do silêncio” uma forma histórica de censura na
medida em que sonega de boa parte da população a isegoria, isto é, a
liberdade fundamental de se expressar e participar do debate público
democrático?
Para responder a essa questão, há de se fazer uma distinção
fundamental, embora de maneira muito simplificada, entre duas noções de
liberdade, uma na tradição liberal e outra na tradição republicana.
[Existe uma vasta bibliografia sobre o tema. Uma introdução geral pode
ser encontrada em Honohan (2002). Em português, há o já clássico de
Skinner, 1999.]
A liberdade é um elemento pervasivo no pensamento moderno. Ela é
parte intrínseca da história do que chamamos modernidade e tem dominado o
pensamento ocidental nos últimos dois, três séculos. No mundo bipolar
da Guerra Fria, a liberdade serviu como argumento central na batalha
ideológica do Ocidente contra o Oriente (Nordenstreng, passim). A
liberdade talvez seja o valor mais invocado do mundo contemporâneo,
apesar de entendido nas mais variadas maneiras (Honohan, passim).
Na perspectiva liberal, prevalece o caráter pré-político e privado da
liberdade. Entende-se a liberdade como se ela pudesse ser desvinculada
da política e como um direito formado exclusivamente na esfera privada. A
versão mais conhecida dessa perspectiva é a que reduz a liberdade
somente à ausência de interferência externa na ação do indivíduo, a
chamada liberdade negativa.
Já na perspectiva republicana, prevalece a idéia de liberdade
associada à vida activa, ao livre-arbítrio, ao autogoverno, à
participação na vida pública, na res publica. É daí que vem o
significado original da palavra política, de polis, isto é, tudo que se
refere à cidade, civil, público.
O poder arbitrário (dominação) é incompatível com a liberdade cidadã,
construída politicamente e entendida não como uma possessão privada
desfrutada pelo indivíduo isolado, mas como o pertencimento a um mundo
onde todos podem revelar a si mesmos, livremente, diante dos outros, sem
qualquer medo de punição (Saxonhouse, passim).
Essa liberdade republicana se associa historicamente à democracia
clássica Grega, à república romana e ao humanismo cívico do início da
idade moderna.
A liberdade liberal tem sua matriz no liberalismo que se constrói a
partir do século XVII na Inglaterra, depois como reação conservadora à
Revolução Francesa e se consolida no século XIX em complemento à idéia
de mercado livre, isto é, à liberdade privada de produzir, distribuir e
vender mercadorias.
São tradições distintas: uma se origina em Atenas, passa por Roma e
se filia modernamente a pensadores como Maquiavel, Milton e Paine. A
outra a Hobbes, Locke, Benjamin Constant e, mais recentemente, a Isaiah
Berlin.
Embora ambas as tradições reconheçam a liberdade de expressão
(isegoria) como fundamental para a definição da democracia, elas
divergem radicalmente sobre o papel que o Estado desempenha em relação a
essa liberdade.
Na tradição liberal, o Estado deve abster-se totalmente de qualquer
interferência em relação à liberdade de expressão dos cidadãos. Na
verdade, a liberdade de expressão é considerada uma proteção do
indivíduo em relação ao Estado cuja interferência é entendida como
cerceamento da liberdade individual, como uma forma de censura.
Na tradição republicana, ao contrário, a liberdade de expressão é
entendida como liberdade de deliberação em nome do interesse público.
Nas democracias a intervenção do Estado é bem-vinda na medida em que são
os cidadãos que definem, através de sua participação política, as
regras (leis) que serão seguidas para que a liberdade seja desfrutada. A
liberdade de expressão é o instrumento básico dessa participação e,
embora se realize tanto no espaço público quanto no espaço privado,
neste, ela só é possível através da política, isto é, de sua defesa
pública. Cabe ao Estado garantir que todos os cidadãos possam exercer
igualitária e plenamente a liberdade de expressão, a isegoria.
Vale registrar que, mesmo em países onde a tradição liberal é
dominante, há jurisprudência consolidada sobre o papel do Estado como
fiador das liberdades e, especificamente, da liberdade de expressão. É o
caso, por exemplo, dos Estados Unidos.
O jurista liberal e professor Owen Fiss da Universidade de Yale, em
pequeno, mas precioso livro – A Ironia da Liberdade de Expressão-Estado,
Regulação e Diversidade na Esfera Pública – publicado originalmente em
1996, introduz o conceito de “efeito silenciador do discurso” quando
discute que, ao contrário do que apregoam os liberais clássicos, o
Estado não é um inimigo natural da liberdade. O Estado pode ser uma
fonte de liberdade, por exemplo, quando promove “a robustez do debate
público em circunstâncias nas quais poderes fora do Estado estão
inibindo o discurso. Ele pode ter que alocar recursos públicos –
distribuir megafones – para aqueles cujas vozes não seriam escutadas na
praça pública de outra maneira. Ele pode até mesmo ter que silenciar as
vozes de alguns para ouvir as vozes dos outros. Algumas vezes não há
outra forma” (p. 30).
Fiss usa como exemplo os discursos de incitação ao ódio, a
pornografia e os gastos ilimitados nas campanhas eleitorais. As vítimas
do ódio têm sua auto-estima destroçada; as mulheres se transformam em
objetos sexuais e os “menos prósperos” ficam em desvantagem na arena
política.
Em todos esses casos, “o efeito silenciador vem do próprio discurso”,
isto é, “a agência que ameaça o discurso não é Estado”. Cabe, portanto,
ao Estado promover e garantir o debate aberto e integral e assegurar
“que o público ouça a todos que deveria”, ou ainda, garanta a democracia
exigindo “que o discurso dos poderosos não soterre ou comprometa o
discurso dos menos poderosos”.
Especificamente no caso da liberdade de expressão, continua Fiss,
existem situações em que o “remédio” liberal clássico de mais discurso,
ao invés da regulação do Estado, simplesmente não funciona. Aqueles que
supostamente poderiam responder ao discurso dominante não têm acesso às
formas de fazê-lo (pp. 47-48), vale dizer, não têm acesso ao debate
público controlado pelos grandes grupos de mídia.
Muitas vezes esse impasse provoca, desgraçadamente, o recurso ao
terror da violência como forma de expressão de ideias (Freitas, 2012).
A vertente liberal norte-americana representada pelo professor Fiss,
todavia, não tem sido a prevalente no Brasil. Muito ao contrário. Na
nossa história, tem prevalecido um liberalismo excludente tanto de
liberdade quanto de cidadania.
O liberalismo brasileiro sempre conviveu e continua a conviver, sem
qualquer problema, com a desigualdade – vale dizer, com ausência de
isonomia – desde a escravidão até questões contemporâneas envolvendo as
relações entre raças e gêneros [vários autores têm tratado das
características do liberalismo brasileiro, dentre eles lembro Alfredo
Bosi, Emília Viotti da Costa e Raymundo Faoro].
A prevalência desse liberalismo excludente foi exacerbada nas últimas
décadas pela onda neoliberal que varreu o planeta. Junto às
privatizações veio o discurso do “fim do Estado nação” e do “Estado
mínimo”, portanto, a rejeição à interferência do Estado, em especial no
que se refere às garantias para que todas e todos possam exercer o
princípio da isegoria.
A exacerbação neoliberal provoca um estranho paradoxo no que se
refere ao debate – ou à sua ausência – em torno da liberdade de
expressão.
Os professores mineiros Juarez Guimarães e Ana Paola Amorim (2012)
identificam o que chamam de “impasse do encarceramento” ao tratarem da
noção liberal de liberdade. Recorro a eles, em texto ainda inédito,
quando afirmam: “O estreitamento argumentativo liberal reside
principalmente na desvinculação entre a liberdade de expressão e as
condições de autogoverno. Em sua história, o liberalismo formou (…) o
seu conceito de liberdade, separando-o da noção de participação política
e autogoverno. Nessa autonomização da liberdade de expressão das
condições de autogoverno residiria, então, o caminho de sua própria
autonomização conceitual da noção de liberdade.
- O impasse do encarceramentoliberal refere-se à tradição
argumentativa, amplamente disseminada e até mesmo referencial, que
explica a gênese da liberdade de expressão e seu desenvolvimento única e
exclusivamente à tradição liberal. Assim, o seu debate é circunscrito
ao pluralismo apenas no interior da tradição liberal, à sua gramática, à
sua variação conceitual e à sua linguagem.
- O argumento liberal sobre a liberdade de expressão é paradoxal:
[ela] não se discute… fora dos marcos liberais! A fórmula
propagandística que resulta deste antipluralismo e sectarismo genéticos é
que toda proposta, argumento ou legislação que contrarie os modos
liberais de pensar a liberdade de expressão são imediatamente
denunciados como contrários à própria liberdade de expressão.
Não nos deveria surpreender, portanto, que continue a existir uma
reação tão forte no Brasil às eventuais propostas de política pública
regulatória para a mídia [para uma avaliação das políticas públicas de
comunicações no Brasil nos últimos anos ver Lima (2012b)].
O “impasse do encarceramento” faz com que até mesmo o debate sobre
essa política – vale dizer, sobre a intervenção do Estado como
garantidor de liberdades – essencial na perspectiva republicana, passe a
ser entendido como uma ameaça à própria liberdade de expressão.
Esse paradoxo se manifesta no debate – ou na ausência dele, repito – em relação à liberdade da imprensa.
Evocando a máxima dos antropólogos de que “toda identidade é uma
diferença” quero agora comparar a liberdade de expressão com a liberdade
da imprensa. Ao compará-las, espero melhor desvendar a identidade de
cada uma [para uma detalhada discussão sobre as diferenças entre
liberdade de expressão e liberdade da imprensa ver Lima (2012a)].
Qual é a diferença entre liberdade de expressão e liberdade da
imprensa? Qual o significado original das palavras que expressam essa
diferença? Como os documentos legais tratam essas liberdades? Quais as
pré-condições materiais para que elas existam?
Vamos começar com o significado original das palavras speech
(expressão), print (imprimir), press (imprensa) e the press (a
imprensa). Creio que herdamos este significado da língua inglesa.
Registre-se que o conceito de liberdade de expressão é muito anterior
ao debate clássico ocorrido na Inglaterra do século XVII. Na Grécia
antiga havia pelo menos quatro palavras que significavam liberdade de
expressão – como já vimos, um dos princípios fundamentais da democracia e
essencial para a realização do homem cívico na polis: isegoria,
isologia, eleutherostomia eparrhesia (Stone, esp. cap. 17) [para um
extenso e erudito debate sobre o papel da liberdade de expressão na
democracia clássica ateniense ver Saxonhouse (2006)].
Na Inglaterra, por outro lado, a expressão “freedom of speech” só aparece pela primeira vez nos famosos Institutes of the Laws of England, publicados por Sir Edward Coke, entre 1628 e 1644.
Embora em inglês como em português a palavra imprensa (press) possa
significar tanto (a) a máquina de imprimir [impressora, tipografia] como
(b) qualquer meio de comunicação de massa ou, ainda, (c) o conjunto
deles, a passagem do primeiro para os outros sentidos altera
radicalmente o locus do sujeito da liberdade de expressão vinculado a
cada um dos três sentidos, vale dizer, do indivíduo-cidadão para a
instituição-empresa. Ademais, existe em inglês uma distinção entre
speech (expressão, palavra), print (imprimir), press (imprensa,
impressora, tipografia) e the press (a imprensa) que, na maioria das
vezes, as traduções para o Português insistem em ignorar.
Um exemplo: se formos ao panfleto seiscentista Areopagitica de John
Milton (1644), clássico reiteradamente lembrado na defesa da liberdade
da imprensa, veremos que ele se refere ao direito, então considerado
natural, do indivíduo-cidadão expressar (speech) e imprimir (print) suas
idéias no exercício de seu livre-arbítrio e sem restrições externas.
Escrito para combater uma Ordenação do Parlamento inglês regulando a impressão de documentos, panfletos e livros (An Ordinance for the Regulating of Printing,
1643), o argumento de Milton gira em torno da capacidade individual de
livre-arbítrio e da conseqüente necessidade de cada um se expressar e se
expor às diferentes versões sobre um assunto para alcançar a verdade.
- Dai-me a liberdade para saber, para falar e para discutir
livremente, de acordo com a consciência, acima de todas as liberdades –
afirmava Milton em passagem famosa do Areopagitica (p.169).
O Areopagitica, portanto, cujo subtítulo é um discurso de John Milton pela liberdade de imprimir sem licença, dirigido ao Parlamento da Inglaterra (A speech of Mr. John Milton for the liberty of unlicenc’d printing to the Parlament (sic) of England), não poderia estar se referindo à imprensa (the press), no seu significado atual.
Ademais, no texto, não há referência a the press, mas sim a printing;
e, na Inglaterra do século XVII, não existiam “jornais”, no sentido
contemporâneo e, muito menos, empresas comerciais de mídia (de meios
impressos e/ou eletrônicos).
Aliás, só há registro da palavra jornal – newspaper – na língua inglesa no final do século XVII, em 1670!
Apesar disso, tanto na tradução clássica de Hipólito da Costa
publicada no Correio Brazilienze, em 1810, quanto na edição
contemporânea existente entre nós do Areopagitica (1999), printing
(imprimir) é traduzido por “imprensa” e seu sentido dominante em
Português tem sido “a imprensa” (the Press), instituição moderna que
significa o conjunto dos meios de comunicação ou a mídia. O próprio
subtítulo passa a ser “Discurso pela Liberdade de imprensa ao Parlamento
da Inglaterra”, enquanto o texto original se refere à liberdade de
imprimir sem licença.
Como os documentos de referência – legais ou não – tratam essas liberdades?
A distinção clara entre liberdade de expressão e liberdade da
imprensa também aparece em documentos (legais ou não), que, mesmo assim,
são sempre indistintamente evocados na defesa da liberdade da imprensa.
Vejamos, cronologicamente:
Na Declaração de Virgínia, de 1776, oArtigo XII fala especificamente em liberdade da imprensa (freedom of the press).
Já a Primeira Emenda da Constituição dos EUA, de 1789/1791,assegura a
liberdade de expressão (freedom of speech), a liberdade da imprensa
(freedom of the press), a liberdade religiosa, a separação entre Igreja e
Estado, o direito de reunião e o direito de petição.
A Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão francesa, de 1789,
fala do direito à “livre comunicação das idéias e das opiniões” e que
“todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente”
(grifo acrescido).
Por outro lado, tanto a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de
1948, como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de
1966, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 1969, e a
Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão, de 2000, falam do
direito da “pessoa” (indivíduo) à liberdade de opinião e expressão,
especificando que este direito inclui “a liberdade de, sem
interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir
informações e ideias por quaisquer meios (media, no original em inglês) e
independentemente de fronteiras” [Artigos 19, 13 e Princípio 1º,
respectivamente].
A nossa Constituição, de 1988, por sua vez, refere-se à liberdade
individual de manifestação do pensamento (inciso IV do Artigo 5º), e à
“plena liberdade de informação jornalística” (§ 1º do Artigo 220). A
única ocasião em que aparece a expressão “liberdade de imprensa” no
texto Constitucional é em relação às medidas que podem ser tomadas pelo
Presidente da República na vigência do Estado de Sítio (inciso III do
Artigo 139). Não é, curiosamente, no Capítulo da Comunicação Social.
E finalmente, a Declaração de Chapultepec, de 1994, se refere
claramente a duas liberdades, a liberdade de expressão e a liberdade de
imprensa.
Como se vê, todos esses documentos se referem distintamente (a) à
liberdade daimprensa; (b) à liberdade de expressão (de idéias e/ou de
opiniões); ou (c) às liberdades de expressão (de idéias e/ou de
opiniões) e de imprensa. Isso significa que, historicamente, essas
liberdades têm sido entendidas como distintas ou não haveria razão para
diferenciá-las. Ademais, a liberdade de expressão está sempre referida à
pessoa, ao indivíduo-cidadão. Já a liberdade da imprensa aparece como
“condição” para a liberdade individual (Declaração de Virgínia) ou como
uma liberdade da “sociedade” equacionada com a imprensa e/ou os meios de
comunicação (Declaração de Chapultepec).
Outra forma dediferenciar as liberdades de expressão e da imprensa é
verificar quais são as pré-condições materiais necessárias para que cada
uma delas exista.
Enquanto a primeira nasce com o indivíduo-cidadão, a segunda, para
existir, implica não só a disponibilidade de material para impressão –
papel, impressora e tinta – mas, também, a capacidade dos indivíduos de
ler, vale dizer, implica a existência de um público leitor.
A passagem da cultura oral para a cultura letrada e a formação, o
tamanho e a história dos “públicos leitores” nas diferentes sociedades,
contam boa parte da história da própria imprensa e, consequentemente, da
liberdade da imprensa.
É necessário, portanto, que se leve em conta a consolidação da
“imprensa” no contexto das enormes transformações que sofreram, ao longo
dos últimos cinco séculos, as formas de imprimir e aquilo que é
impresso; as estradas de ferro como canais de distribuição; a descoberta
da eletricidade e de alguns de seus derivados, como, por exemplo, o
telégrafo.
Tudo isso num longo e lento processo que começa no século XV,
passando pela Revolução Industrial do século XIX, pela Revolução Digital
do final do século XX e chega até os nossos dias.
Há um enorme e complexo caminho percorrido desde os volantes avulsos
anônimos sem periodicidade, aos livros de notícias (booknews), panfletos
e pasquins artesanais, passando às gazetas, folhas (newspapers) e
periódicos pessoais – onde o redator, o cronista e o editor eram a mesma
pessoa – até os jornais populares de massa e os grandes jornais e
revistas de nossos dias.
Considerando as diferentes condições materiais necessárias à
existência das liberdades de expressão e da imprensa, seria o contexto
do nosso século XXI favorável ao exercício da liberdade de expressão? Ou
melhor, seria possível considerar, como usualmente se faz, a liberdade
da imprensa – a imprensa hoje existente – como extensão da liberdade de
expressão individual?
Desde quando a imprensa se transforma em instituição, ou melhor, em
empresa capitalista, sua relação direta com a liberdade de expressão
individual deixa de existir. Ela não guarda mais relação direta com o
que se pretende por liberdade da imprensa dos grandes conglomerados
globais de comunicação e entretenimento, muitos deles, com orçamentos
superiores àqueles da maioria dos Estados membros das Nações Unidas.
Na verdade, a transformação da imprensa em empresa que demanda cada vez mais capital, não é uma preocupação nova.
No início do século XX, no Primeiro Congresso da Associação Alemã de
Sociologia, realizado em 1910, Max Weber – fundador da sociologia
política – apresentou um programa de pesquisa no qual afirmava:
- Uma das características das empresas de imprensa é, hoje em dia,
sobretudo, o aumento da demanda de capital. (…) Em que medida essa
crescente demanda de capital significa um crescente monopólio das
empresas jornalísticas existentes? (…) Esse crescente capital fixo
significa também um aumento de poder que permite moldar a opinião
pública arbitrariamente? Ou, pelo contrário, (…) significa uma crescente
sensibilidade por parte das distintas empresas diante das flutuações da
opinião pública?.
Além de se transformar em empresa e operar dentro da lógica do
capital, a imprensa passou também a deter o monopólio virtual da
construção, manutenção e reprodução de capital simbólico e, portanto, a
funcionar dentro de outra lógica, isto é, a lógica do poder.
O famoso relatório da Comissão MacBride, publicado no início da
década de 80 do século passado e hoje abandonado pela UNESCO, referia-se
à dimensão política da comunicação que aumenta constantemente em função
de uma “contradição fundamental (inegável)”. Dizia o relatório:
“à medida que ia se estendendo, em cada país e no mundo inteiro, o
número daqueles a quem a alfabetização, a ‘conscientização’ e o
desenvolvimento da independência nacional transformavam em solicitantes
de informação, ou em candidatos à emissão de mensagens, uma contradição
inegável, relacionada com as exigências financeiras do progresso
técnico, talvez não de forma absoluta, mas pelo menos relativamente,
reduzia o numero de emissores, ao mesmo tempo em que intensificava [o
poder deles]” (p. 31, grifo nosso).
Entre nós, o saudoso sociólogo e jornalista Perseu Abramo, no seu
conhecido livro Padrões de Manipulação na Grande Imprensa, escrito em
1988, já afirmava:
“Os órgãos de comunicação se transformaram em entidades novas,
diferentes do que eram em sua origem, distintas das demais instituições
sociais, mas extremamente semelhantes a um determinado tipo dessas
instituições sociais, que são os partidos políticos. (…) Na realidade,
esses grandes órgãos efetivamente são autônomos e independentes, em
grande parte, em relação a outras formas de poder (…) porque são eles
mesmos, em si, fonte original de poder, entes político-partidários, e
disputam o poder maior sobre a sociedade em benefício dos seus próprios
interesses e valores políticos. (…) Os órgãos de comunicação são os
meios de comunicação de si mesmos como partidos [políticos].”
Na mesma linha, o também saudoso professor Octávio Ianni, analisando o
“complexo e difícil palco da política”, na época da globalização,
referindo-se à televisão, afirmava em 1999:
- Em lugar de O Príncipe de Maquiavel e de O Moderno Príncipe de
Gramsci, assim como de outros ‘príncipes’ pensados e praticados no curso
dos tempos modernos, cria-se O Príncipe Eletrônico, que simultaneamente
subordina, recria, absorve ou simplesmente ultrapassa os outros.
Apesar do exposto até aqui, não é raro encontrar-se distorções e
deslocamentos importantes na utilização que se faz das expressões
Liberdade de Expressão e Liberdade da Imprensa, inclusive nas mais altas
instâncias do nosso Poder Judiciário.
Comentando o Artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos
(1948), o renomado professor da University of Tampere [Finlândia],
Kaarle Nordenstreng, firma que “o sujeito dos direitos humanos e das
liberdades fundamentais não é uma instituição chamada a imprensa ou a
mídia, mas um ser humano individual”. E prossegue: “a frase ‘liberdade
de imprensa’ é enganosa na medida em que ela inclui uma ideia ilusória
de que o privilégio dos direitos humanos é estendido à mídia, seus
proprietários e seus gerentes, ao invés de ao povo para expressar sua
voz através da mídia”. E mais à frente afirma: “nada no Artigo 19 sugere
que a instituição da imprensa tem qualquer direito de propriedade sobre
esta liberdade”.
A extensão de uma liberdade fundamental “à mídia, seus proprietários e seus gerentes”, no entanto, tem sido freqüente.
O Acórdão do STF [novembro de 2009] em relação ao julgamento da ADPF –
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, n. 130 que
considerou inconstitucional a totalidade da antiga Lei de Imprensa (Lei
5.250 de 1967), consagra interpretação oposta à do professor
Nordenstreng ao estabelecer uma hierarquia entre as diferentes
liberdades e deslocar o locus da liberdade do indivíduo para “a
imprensa”. Diz o item n. 6 do Acórdão que trata da “Relação de Mútua
Causalidade entre Liberdade de imprensa e Democracia”:
- A plena liberdade da imprensa é um patrimônio imaterial que
corresponde ao mais eloqüente atestado de evolução político-cultural de
todo um povo. Pelo seu reconhecido condão de vitalizar por muitos modos a
Constituição, tirando-a mais vezes do papel, a Imprensa passa a manter
com a democracia a mais entranhada relação de mútua dependência ou retro
alimentação. Assim visualizada como verdadeira irmã siamesa da
democracia, a imprensa passa a desfrutar de uma liberdade de atuação
ainda maior que a liberdade de pensamento, de informação e de expressão
dos indivíduos em si mesmos considerados [grifo nosso].
É também rotineiro encontrar-se não só o deslocamento do sujeito da
liberdade de expressão do indivíduo-cidadão para a “sociedade” e, desta,
implicitamente, para os “jornais”, mas também a utilização das duas
expressões – liberdade de expressão e liberdade da imprensa – como se
equivalentes fossem.
Um exemplo pode ser constatado nas poucas linhas de anúncio de meia
página que a Associação Nacional de Jornais (ANJ) fez publicar em vários
jornais por ocasião de seus 30 anos (agosto de 2009). O sujeito da
liberdade de expressão deixa de ser o indivíduo-cidadão e passa a ser
uma difusa “sociedade”; os jornais são genericamente identificados com
“os olhos e os ouvidos de milhões de pessoas” e a imprensa como
formadora desinteressada da opinião pública, “o que mais interessa na
democracia”. Por fim, liberdade da imprensa e liberdade de expressão são
explicitamente consideradas como equivalentes. O texto completo do
anúncio diz:
Título: Sem liberdade de imprensa esta seria a única testemunha.
(a imagem é de um rato que assiste a uma suposta cena de corrupção
sendo praticada por dois homens iluminados por faróis de automóveis).
Texto: Nos últimos 30 anos, o país passou por mudanças decisivas. E
os jornais foram os olhos e os ouvidos de milhões de pessoas durante o
processo. Graças ao trabalho da imprensa, o cidadão teve acesso a
informações preciosas que se tornaram o que mais interessa numa
democracia: opinião.
Assinatura: ANJ. Há 30 anos lutando pelo que a sociedade tem de mais valioso: a liberdade de expressão.
Diante dessa realidade, são muitos e enormes os desafios que temos
pela frente se pretendemos uma democracia onde prevaleçam os princípios
da isonomia e da isegoria, vale dizer, onde não exista qualquer forma de
censura.
O Brasil dispõe hoje de uma das mais avançadas legislações de acesso à
informação do planeta, a Lei 12.527 de novembro de 2011. Temos também a
imensa possibilidade potencial de construção de novas formas de
sociabilidade oferecida pela internet, pendente a universalização do
acesso aos computadores e a banda larga de qualidade, além da aprovação
pelo Congresso Nacional do PL 2126/2011 – o marco civil da internet –
cuja votação está agora prevista para depois das eleições municipais.
Apesar disso, temos que trabalhar pelo fortalecimento do campo da
mídia pública – das rádios e TVs públicas e comunitárias – e pela
inadiável adoção de um novo marco regulatório para a mídia.
E aqui devemos começar pelo simples cumprimento do que já determina a
Constituição Federal de 1988, portanto, há mais de 23 anos.
Indico a seguir algumas conseqüências parciais e imediatas para a
democracia brasileira que resultariam apenas da regulação de quatro
artigos da Comunicação Social (Capítulo V do Título VIII) até hoje não
regulamentados.
[Deixo de mencionar os vários incisos referentes à comunicação que
estão no artigo 5º – Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos.]
>> Artigo 220
O professor Fábio Konder Comparato (2011) lembrou recentemente que o
Inciso II do parágrafo 3º do artigo 220 manda que lei complementar
estabeleça os meios legais que garantam à pessoa e à família a
possibilidade de se defenderem da propaganda de produtos, práticas e
serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente. Tal lei
complementar não existe.
A Organização Mundial da Saúde, desde 2005, tem lançado advertências
sobre os efeitos nocivos à saúde, provocados pela obesidade, sobretudo
entre crianças e adolescentes. Neste sentido, a ANVISA – Agência
Nacional de Vigilância Sanitária baixou, em 15 de junho de 2010, a
Resolução RDC n º 24 regulamentado…
- A oferta, propaganda, publicidade, informação e outras práticas
correlatas, cujo objetivo seja a divulgação e a promoção comercial de
alimentos considerados com quantidades elevadas de açúcar, de gordura
saturada, de gordura trans, de sódio e de bebidas com baixo teor
nutricional.
A Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação (ABIA), vendo
os interesses empresariais de seus membros contrariados, ingressou com
ação na Justiça Federal de Brasília contra a ANVISA pedindo que não se
aplicasse a eles os dispositivos da referida Resolução, de vez que só
uma lei complementar poderia regular a Constituição.
Resultado: a 16ª Vara da Justiça Federal suspendeu os efeitos da
Resolução em liminar posteriormente mantida pelo Tribunal Regional
Federal da Primeira Região.
Pergunto: não interessaria, sobretudo a mães e pais de crianças, a
regulação da propaganda de “alimentos considerados com quantidades
elevadas de açúcar, de gordura saturada, de gordura trans, de sódio e de
bebidas com baixo teor nutricional”?
Da mesma forma, não interessaria a regulação do parágrafo 4º do mesmo
artigo 220, que se refere à propaganda comercial de tabaco, bebidas
alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias?
O parágrafo 5º do artigo 220, por outro lado, reza que “os meios de
comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de
monopólio ou oligopólio”. Sua regulação teria, necessariamente, que
restringir a propriedade cruzada – um mesmo grupo empresarial
controlando diferentes meios (rádio, televisão, jornais, revistas,
provedores e portais de internet), num mesmo mercado – como, aliás,
acontece nas principais democracias contemporâneas. Ao mesmo tempo,
deveria promover o ingresso de novos concessionários de rádio e
televisão no mercado de comunicações.
Não interessaria ter um leque maior de alternativas para escolher a
programação de entretenimento ou de jornalismo que se deseja ouvir e/ou
assistir?
>> Artigo 221
Os quatro incisos do artigo 221 se referem aos princípios que devem
ser atendidos pela produção e pela programação das emissoras de rádio e
televisão. São eles: preferência a finalidades educativas, artísticas,
culturais e informativas; promoção da cultura nacional e regional e
estímulo à produção independente que objetive sua divulgação;
regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme
percentuais estabelecidos em lei; e respeito aos valores éticos e
sociais da pessoa e da família.
Não interessaria, por exemplo, aos produtores independentes de cinema
e vídeo a geração de empregos, a promoção da cultura nacional e
regional e o incentivo à produção cultural, artística e jornalística
regional? E a todos nós o respeito aos valores éticos e sociais da
pessoa e da família?
>> Artigos 222 e 223
Dos artigos 222 e 223 – deixando de lado a questão crítica das
outorgas e renovações das concessões de rádio e televisão [sobre as
concessões de radiodifusão ver Lima (2011)] – talvez o benefício mais
perceptível fosse a regulamentação do “princípio da complementaridade”
entre os sistemas privado, público e estatal de radiodifusão. Combinada
com o parágrafo 5º do artigo 220 – “os meios de comunicação social não
podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio” –
essa regulamentação possibilitaria o necessário equilíbrio no mercado
de rádio e televisão, hoje inexistente.
>> Artigo 224
O último dos artigos do Capítulo V cria o Conselho de Comunicação
Social como órgão auxiliar do Congresso Nacional foi regulamentado pela
Lei n.º 8.339 de 1991. O CCS somente foi instalado 11 anos depois, em
2002, deixou de funcionar em 2006 e foi reinstalado agora – em agosto de
2012 – sob protesto da Frente Parlamentar pela Liberdade de Expressão e
o Direito a Comunicação com Participação Popular (FRENTECOM) e do Fórum
Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), pela forma
antidemocrática como a Mesa Diretora do Congresso Nacional procedeu na
escolha de seus membros e no encaminhamento da sua eleição (Lima, 2012).
Os descaminhos do Conselho de Comunicação Social previsto no artigo
224, todavia, não deveriam impedir a criação dos Conselhos Estaduais de
Comunicação Social, já previstos em pelo menos 12 constituições
estaduais e na Lei Orgânica do Distrito Federal e, até hoje, instalado e
funcionando apenas no estado da Bahia (Lima, 2011a).
Liberdade e liberdade de expressão são conceitos em disputa e, ao
mesmo tempo, princípios a ser defendidos em nome de uma democracia
republicana.
No Brasil, os adversários da isegoria têm conseguido construir – como
significação dominante no espaço público – o entendimento de que
estamos diante de uma batalha entre liberdade (liberdade de expressão) e
censura do Estado (regulação).
O vazio provocado pela ausência de propostas concretas do governo e a
impotência histórica dos (não) atores da sociedade civil fazem com que o
campo de significações sobre o que constitui um Marco Regulatório para
as Comunicações esteja hoje sob o controle exatamente de seus opositores
mais ferrenhos.
Na verdade, trata-se de velha e conhecida tática. Escolhe-se um
princípio sobre o qual existe amplo consenso e desloca-se para seu campo
de significação a questão em disputa. Como em política, apoiar uma
posição significa estar contra outra, é preciso identificar um
adversário, no caso, os inimigos da liberdade de expressão, por
extensão, aqueles que querem a censura.
Torna-se necessário, portanto, que a grande mídia convença a maioria
da população de que “alguém” – que, por óbvio, não é ela – é contra a
liberdade, mesmo que nossa história política, em várias ocasiões, revele
exatamente o contrário. Como a grande mídia (ainda) tem o poder de
construir e “enquadrar” a agenda pública, ela repete exaustivamente a
“inversão” até criar um ambiente falso no qual ela – a grande mídia –
apresenta a si mesma como a grande defensora da liberdade.
Nesse contexto, não basta comprovar que a mídia é regulada nas
democracias mais avançadas do mundo; não basta propor que as normas e
princípios constantes da Constituição de 88 sejam o “terreno comum” para
se negociar a regulação; não basta mostrar que as mudanças tecnológicas
exigem uma atualização da legislação; não basta reiterar compromissos
com a Constituição Federal nem com a liberdade de expressão. Nada é
suficiente.
Ao usar como estratégia o bordão da ameaça constante de retorno à
censura e de que a liberdade de expressão está em risco, os grandes
grupos de mídia transformam a liberdade de expressão num fim em si
mesmo. Ademais, escamoteiam a realidade de que, no Brasil, o debate
público não só [ainda] é majoritariamente pautado por ela – a grande
mídia – como uma imensa maioria da população a ele não tem acesso e é
dele historicamente excluída.
A interdição do debate verdadeiramente público de questões relativas à
democratização das comunicações pelos grupos dominantes de mídia, na
prática, funciona como uma censura disfarçada.
Essa é a situação em que nos encontramos.
De qualquer maneira, o critério fundamental para a formulação e a
avaliação de qualquer política pública garantidora da liberdade de
expressão e, portanto, da ausência de censura deve ser sempre se ela
possibilita a superação da “cultura do silêncio”. Vale dizer, se
possibilita que mais e diferentes vozes sejam ditas e ouvidas através da
participação cidadã no debate público e se caminha no sentido da
isegoria, princípio basilar da democracia republicana.
Venício A. de Lima é jornalista e sociólogo,
pesquisador visitante no Departamento de Ciência Política da UFMG
(2012/2013), professor de Ciência Política e Comunicação da UnB
(aposentando) e autor de Política de Comunicações: um Balanço dos
Governos Lula (2003-2010), Editora Publisher Brasil, 2012, entre outros.