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Kit evangélico
A imagem do candidato tucano José Serra já foi mais associada a valores
liberais, cultivados por grupos tanto à esquerda quanto à direita do
espectro partidário.
Tais valores informam que preferências sexuais e religiosas são assunto
da órbita privada; ao homem público caberia manter equidistância de
lobbies que, na defesa legítima de seus interesses, acabam por conferir
relevo exagerado a temas da esfera íntima.
Na corrida presidencial de 2010, ao explorar contradição da petista
Dilma Rousseff -que se dizia favorável à descriminalização do aborto,
mas recuou na campanha de maneira oportunista-, Serra já havia selado
uma aliança com o conservadorismo evangélico. Sua atual peregrinação por
templos e a aceitação graciosa de apoiadores que flertam com a
intolerância indicam um caminho sem volta.
Tal rota pode render-lhe resultado nas urnas, sem dúvida. Pesquisas,
como a realizada pelo Datafolha em setembro, indicam que convicções
conservadoras são partilhadas por amplos setores da sociedade
paulistana. Mas não há como comer do bolo conservador e, ao mesmo tempo,
passar-se por liderança moderna, arejada.
Daí um certo cansaço, misturado a frustração, que se nota nos círculos
mais liberais. Tanto mais quando um pastor, Silas Malafaia, defende com o
espírito de cruzados medievais a candidatura de Serra. "Vou arrebentar
em cima do Haddad", jactou-se o líder religioso.
O pretexto é o famigerado "kit gay", tentativa desastrada do então
ministro da Educação, Fernando Haddad (PT), de produzir um material -de
formulação discutível- contra intolerância sexual nas escolas. Como já
se tornou hábito no petismo, após o estrago e a grita dos religiosos,
recuou-se completamente, e o próprio Haddad tentou desvencilhar-se da
proposta.
O "kit gay", por qualquer ângulo que se olhe, é assunto de somenos na
política pública federal. Que dirá na municipal, em que os destinos da
ocupação do solo, do transporte, da assistência à saúde e do ensino
assumem peso avassalador na lista de prioridades.
Ocupação do solo, aliás, integra o "kit evangélico" real, a agenda de
interesses que religiosos apresentam aos candidatos. Desejam tratamento
diferenciado para os templos -a fim de que possam ultrapassar os níveis
de ruído exigidos de outros estabelecimentos e fixar-se onde e como
queiram, a despeito das normas urbanísticas.
É preocupante a atitude amistosa de Serra com esses lobbies, bem como a disposição de Haddad de também acomodar-se a eles.