Grécia e o futuro da Europa!

E se Grécia, e talvez Europa, estivessem falidos não só economicamente como moralmente, culturalmente e politicamente?

No verão de 1919, Constantino Cavafi encontrou-se com E.M. Forster em Alexandria. Cavafi comparou os gregos com os ingleses. Os dois povos são semelhantes, sagazes, cheios de iniciativa, aventureiros. ‘Mas há uma lamentável diferença. Nós, gregos, estamos falidos. Reze, meu caro Forster, oh reze para nunca perder seu capital.”

Giorgio Agamben, em comentário sobre a misteriosa fala de Cavafi, escreve: “A única certeza é que desde então [1918], todos os povos europeus e talvez o mundo todo tenha falido. A falência grega foi declarada em 2010, embora de ‘maneira ordenada’ e somente de forma temporária. O default temporário é como uma morte temporária. Ela dura para sempre.”

Mas e se a Grécia, e talvez a Europa, estivessem falidos não só economicamente como moralmente, culturalmente e politicamente? Qual é o ganho se os gregos pagarem a dívida, ficarem com o euro e perderem suas almas? A falência política e moral assombra não só os gregos, mas também toda a Europa. A Grécia é o futuro da Europa. E como se sabe sobre o futuro, o melhor e o pior andam lado a lado. Deixe-me começar pelo pior.

Os efeitos acumulados de três séries de medidas de austeridade distintas são desconcertantes. O primeiro memorando impôs até 50% de cortes em salários e aposentadorias de servidores públicos e uma perda estimada de 150 mil postos de trabalho até 2015. O segundo alcançou o setor privado e cortou o salário mínimo em até 32%, aboliu os dissídios coletivos e várias outras proteções trabalhistas de longa data.

Essas medidas são acompanhadas de um aumento em impostos diretos e indiretos, tarifas de transporte público e pedágios, e da imposição de um imposto sobre a propriedade coletado pela conta de luz. Os bens e utilidades públicas restantes, incluindo portos, aeroportos e até ilhas serão privatizados por barganhas. A Acrópole será a próxima.

A economia encolheu -24% em cinco anos, o pior resultado em qualquer lugar do mundo em tempos de paz. Em 2012, o desemprego está em 25% e o desemprego entre jovens em 55%. É o assassinato de toda uma geração, ou um gera-cídio para cunhar um novo termo. A austeridade levou a uma crise humanitária em curso com sem-tetos, doenças mentais e suicídios em níveis sem precedentes. Hospitais não podem funcionar por falta de medicamentos, escolas não têm materiais ou combustível para os aquecedores, os sopões se proliferaram, dois milhões estão vivendo abaixo da linha da pobreza.

Como chegamos a esse ponto depois de tantas reuniões de cúpula e análises de especialistas? Não é preciso muita sabedoria para explicar esse fracasso abjeto. Cortes nos gastos públicos e aumentos de impostos em período de depressão profunda diminuem a demanda, aumentam o desemprego e cortam o crescimento. As receitas de impostos encolhem, gastos com desemprego e outros benefícios aumentam.

O déficit aumenta, os objetivos fiscais não são alcançados, levando a mais austeridade para tapar o buraco. É um círculo vicioso ditado pela idolatria tóxica ao princípios econômicos dominantes. Se os funcionários do FMI fossem calouros em economia, teriam reprovado. Lamentavelmente, seus ditos fazem milhões fracassarem em suas vidas.

Mas o fracasso e a responsabilidade das elites gregas são ainda maiores. Os políticos, banqueiros e barões da mídia que puseram o país de joelhos por 40 anos agora percebem que seu capitalismo clientelista e corrupto está chegando a um fim. Eles farão tudo ao seu alcance para postergar seu fim inevitável. A Grécia é um case de decadência moral e colapso político de um sistema de poder.

Existem provas consideráveis de que o governo grego “remediou” os dados macroeconômicos em 2001 para o país entrar no euro. Os empréstimos em espiral e a dívida crescente foram então usados pelas elites dominantes para lubrificar as engrenagens do clientelismo e da tutelagem. O governo de Papandreou fez crescer o díficit de 3% para 15,4%, desencadeando a intervenção europeia. Para piorar, cada pacote de medidas adotado aumentou a dívida.

A dívida grega era de 120% do PIB em 2009. Será de 190% no ano que vem, depois das dores de uma dúzia de anos chegará a 125% em 2021, ainda acima da posição de 2009. As medidas de austeridade são multiplicadoras da dívida, que continua aumentando e entrando em metástase como um tumo maligno. A sociedade grega está demoronando diante de nossos olhos e a única resposta é mais empréstimos para pagar empréstimos anteriores, que aumento o empréstimo total. É pegar dinheiro do Visa para pagar o Mastercard.

Chamei a combinação de neocolonialismo europeu com a obediência servil da elite grega de “desejo da dívida”: como um “duplo genitivo”, o “desejo da dívida” levanta duas perguntas. Quem desejou a dívida e o que a dívida deseja? A única explicação consistente é que as elites desejaram a dívida, primeiro por empréstimos e gastos enlouquecidos e depois por aumentos deliberados em seus cálculos. O que a dívida deseja? Como a Grécia é devedora, os gregos devem destruir o passado e adotar novos valores radicais em termos de economia, cultura e moral. A dívida má obrigará ao retorno ao caminho da virtude. Como o pharmakon de Platão, a dívida é o veneno e a cura, a maldição e a bênção, a razão da paixão e da ressurreição.

A austeridade procura uma reestruturação da vida no atacado em um capitalismo em crise crônica. Práticas trabalhistas estão cada vez mais próximas das chinesas. O ethos social do povo, os resquícios de amizade, solidariedade e hospitalidade que o período de modernização do capitalismo ainda deixaram em pé, está com os dias contados. Cinismo e niilismo tornaram-se a moralidade dominante. A austeridade testada na Grécia é exportada para Portugal, Irlanda, Espanha, Itália e Reino Unido. Um retorno ao capitalismo vitoriano posto em seu lugar por um Estado autoritário nos espera. A Grécia pode vir a ser o futuro da Europa.

Agora, para as boas notícias. A contracapa da edição grega de um livro que publiquei em dezembro passado diz: “A Europa usou a Grécia como cobaia para testar as condições de reestruturação do capitalismo tardio em crise. O que as elites europeias e gregas não esperavam é que a cobaia ocuparia o laboratório, expulsaria os cientistas cegos e começariam um novo experimento: sua própria transformação de um objeto político para um sujeito político. O significado e os limites da democracia estão sendo renegociados no lugar em que ela nasceu.”

Amigos me disseram que eu fui excessivamente otimista ou, pior ainda, que eu havia perdido a noção da realidade. O movimento de contestação estava calado, a usual melancolia da Esquerda havia retornado.

Onde baseei meu otimismo? A resistência contra a austeridade cresceu durante 2010 e 2011. Mais de 25 greves gerais de um dia, ocupações de ministérios, o não pagamento de impostos sobre propriedades, dos aumentos de tarifa de transporte e de pedágio e vários tipos de desobediência civil. Não aconteceu qualquer grande mudança na política de governo. Em maio de 2011, a resistência parecia ter perdido a força, a melancolia usual da esquerda voltara. Isso mudou no dia 25 de maio com uma ocupação espontânea da Praça Syntagma no centro de Atenas, e em outras 60 cidades por um grupo de pessoas autointituladas aganaktismenoi (indignadas) em uma homenagem aos indignados espanhóis. Vieram pessoas de todas as ideologias e de nenhuma, velhos e jovens, desempregados e classe média, gregos e estrangeiros.

A ocupação rejeitou a lógica da representação, da ideologia partidária, ou liderança política e se abriu para grande fatias da população que não eram politicamente ativas ou votavam pelos partidos estabelecidos. As ocupações duraram três meses. Como resultado, em partes, da ocupação, o governo Papandreou renunciou duas vezes, em junho e finalmente em novembro. Foi um lembrete de que os governos ocidentais podem cair quando abandonam os princípios básicos de democracia, decência e independência.

Eu discursei na Syntagma em junho passado; os felizardos que tiveram seus números sorteados estavam nervosos e ansiosos. Um homem em particular estava tremendo, com sintomas evidentes de medo de falar em público, logo antes de subir no palco. Em seguida ele deu uma bela palestra com frases e parágrafos construídos com perfeição, apresentando um completo e persuasivo plano para o futuro do movimento. “Como você conseguiu?”, perguntei a ele mais tarde, “Achei que você fosse desmaiar.” “Quando comecei a falar”, ele me disse, já mais relaxado, “eu estava dizendo as palavras mas alguma outra pessoa estava discursando. Um estranho dentro de mim me ditava o que dizer.” Essa transubstanciação, o estranho em mim, é o nome da des- e res- subjetivação, a remoção das pessoas da economia do desejo-consumo-frustração do capitalismo biopolítico e sua regeneração política e moral.

Na ocupação da Syntagma e em outras ocupações eu recordei dos assustadores e emocionantes dias de 1973. As ocupações na Escola de Direito e na Politécnica de Atenas deram início ao processo de decadência da ditadura militar. Os estudantes marcharam altivos pelas ruas, com pesados volumes acadêmicos nas mãos, emblemas de identidade e orgulho. Em 2011, em meio à catástrofe que atingiu a Grécia, as pessoas voltaram a sorrir para estranhos nas praças e ruas, com um brilho momentâneo no olhar tão diferente do vazio prevalecente na Grécia hoje.

Meu otimismo se confirmou com os resultados impressionantes da Syriza, o partida da Esquerda radical, nas eleições de 2012. Havia um link entre a resistência e o resultado das eleições? Afinal, os velhos partidos ainda estão no poder, mas são como mortos-vivos ou zumbis. Deixem-me explicar. A resistência deu cabo de das divisões pós-guerra civil entre uma Direita vitoriosa e uma Esquerda derrotada. Pessoas de campos ideológicos e trajetórias históricas opostas se encontravam no mesmo lugar. Um desempregado esquerdista sofre o mesmo tanto que um direitista; interesses comuns de classe tornaram-se mais importantes que desavenças antigas. Depois da Syntagma, o sistema de poder alcançou seu fim. Faltava apenas um empurrão final. Nos dias 6 de maio e 17 de junho, as multidões das praças se tornaram um povo e votaram massivamente na Esquerda. A democracia direta encontrou seu companheiro parlamentar.

Por que a Syriza, e não outro partido antiausteridade qualquer? Membros do partido se juntaram à resistência sem ambições hegemônicas. A Syriza não tentou liderar ou usar as praças para recrutar. Em segundo lugar, a Syriza adotou internamente a ideologia do pluralismo e da democracia direta bem antes da crise. O partido é uma coalizão de doze partidos e grupos, com raízes no eurocomunismo ecológico, no pós-Marxismo, na democracia radical e no pós-anarquismo. Tendências e facções são aceitas. É um “novo tipo” de partido que abandonou as características originais do partido Leninista e está mais próximo do ethos da multidão e da organização das ocupações. As praças adotaram a Syriza como sua escolha óbvia. Uma estratégia de duas mãos se desenvolveu: mobilização social e presença parlamentar, democracia direta e representativa, dentro e contra o Estado. O encontro entre as ocupações e a esquerda radical foi um acaso; foi preparado pela “astúcia da história”.

Para usar uma expressão que colocará um sorriso tanto no rosto do Marxista como no do cínico, o fim de um sistema de poder é uma necessidade histórica. Através da história, revoluções se sucederam quando um sistema de poder se tornou obsoleto e nocivo. É esse o caso da Grécia. A necessidade histórica não é o suficiente. São necessários três elementos. Um forte desejo popular, um agente político preparado para tomar o poder e, finalmente, um catalisador que combinem os outros elementos em um todo combustível. Todos os três elementos convergiram a Grécia, o desejo popular na resistência, a Syriza como o agente político e a austeridade como o catalisador que levará ao primeiro governo de esquerda radical na Europa. A esquerda está preparada, mas como pode ter sucesso?

A estratégia da esquerda deve mitigar os efeitos catastróficos da austeridade enquanto, ao mesmo tempo, refaz o tecido social. Um fim à corrupção e ao clientelismo, a coleta de impostos e a punição por não pagamento de impostos são ações essenciais. Mas tal governo não pode e não deve depender em um retorno gradual à normalidade. Ele vai encarar uma União Europeia hostil; o tempo político será comprimido. Medidas paliativas ou tentativas limitadas de reverter a austeridade não serão suficientes. A esquerda será obrigada a encaminhar uma ordem social democrática, algo que não foi conquistado antes e que não tem projeto ou experiência prévia. A experiência, a energia e a memória da resistência e das ocupações são as melhores esperanças de sucesso.

Quais são as lições das praças? Primeiro, a redescoberta dos princípios do que é público, colaborativo e igualitário. Lugar, tempo e intensidade foram pontos centrais. Lugar: a localização em uma praça do lado oposto ao Parlamento criou um novo espaço fluido de poder político. Tempo: o tempo linear de trabalho se tornou o tempo teleológico da práxis. Finalmente, a intensidade da proximidade corporal e emocional, criada por um desejo político comum, teve as características de um poder constituído.

A composição social do capitalismo pós-fordista significa que a era dos líderes, partidos centralizados e sindicatos, de sujeitos políticos sólidos e conscientes aguardando representação, está com os dias contados. Cooperação e networking, solidariedade e organização horizontal, compartilhamento de conhecimentos e técnicas são os princípios guiadores. As praças transferiram esses princípios do trabalho para a política, revertendo  hierarquia e a disciplina do gerenciamento autocrático capitalista. A esquerda deveria adotar e espalhar o espírito das ocupações através de acampamentos virtuais e encontros locais, assembleias nos bairros, subúrbios e cidades, redes de solidariedade e eventos culturais. Os princípios transitórios das ocupações deveriam se tornar uma ferramenta política permanente. O ethos social do trabalho horizontal deveria ser institucionalizado e disseminado, mantendo a cidadania das praças sempre ativa.

“Nós somos as praças, nós estamos em todos os lugares”, deveria ser o princípio que estendesse essas ideias para todas as áreas da vida econômica, social e cultural. Iniciativas de baixo, democracia direta, colaboração física e virtual, juntaria pessoas e técnicas para reviver o senso ausente de comunidade. Empreitadas economicamente lucrativas e socialmente úteis seriam baseadas nesses princípios.

Trabalhadores de indústrias falidas, por exemplo, poderiam assumir a direção do negócio e tocá-lo como uma cooperativa. Um banco especial, custeado por uma coleta solidária e impostos dos ricos, financiaria projetos de colaboração e networking. “Universidades das praças” disseminariam visões alternativas que enfrentem a objetividade dos especialistas. Métodos de democracia direta poderiam ser introduzidos no governo local e, eventualmente, central.

Debates públicos e votação de orçamentos municipais e de todos os problemas locais seriam um bom começo. Eventos artísticos e literários, públicos e gratuitos, marcariam uma cultura política alternativa. A política deveria ser repolitizada e o ethos coletivo deveria ser introduzido em todos os aspectos da vida pública. A Grécia precisa de um renascimento cultural e moral. Aprofundar a democracia e fazendo-a moldar todas as formas de atividade e de vida é a principal lição das praças.

A esquerda grega tem uma grande vantagem moral baseada, em partes, em seu passado limpo mas, especialmente, em seu comprometimento com valores universais. Toda proposta de lei devem ser pensados de acordo com os princípios de igualdade e justiça social. Somente uma combinação da política com uma intenção radical de mobilização social pode ter sucesso.

A tarefa da esquerda grega é desenvolver a “ideia de comunismo” para uma era de crise capitalista . É uma pedida alta para um país pequeno. Ele só pode ter sucesso se os movimentos europeus aprenderem com a experiência grega e seguirem estratégias similares. Neste caso, a resistência grega se tornará o futuro da Europa.

*Costas Douzinas iniciou seus estudos acadêmicos em Atenas durante a ditadura grega e se juntou à resistência estudantil. Deixou a Grécia em 1974 para estudar no Reino Unido. É doutor em Direito pela London School of Economics e diretor do Birkbeck Institute for Humanities, em Londres. Escreveu O Fim dos Direitos Humanos (Ed. Unisinos) e The Idea of Communism, em parceria com Slavoj Zizek. Seu próximo livro, Philosophy and Resistance in the Crisis, será publicado em 2013 pela Polity Press.