Globo ataca governo venezuelano com dados manipulados
Prezada Senhora Sandra Cohen
Editora de Mundo de O Globo
Já é sabido que o jornal O Globo
não nutre qualquer simpatia pelo governo do presidente venezuelano Hugo
Chavez e tem-se esforçado a formar entre seus leitores opinião
contrária ao chavismo – por exemplo, entrevistando o candidato Henrique
Caprilles sem oferecer ao leitor entrevista com o candidato Nicolas
Maduro em igual espaço. Isto por si já é algo temerário, mas como eu não
tenho a capacidade de modificar a linha editorial do jornal,
resigno-me.
O problema é que o jornal tem utilizado sistematicamente
dados um tanto quanto estranhos em sua tarefa de formar a opinião do
leitor. Sou professor de Economia da Universidade Federal Fluminense e,
embora não seja “especialista” em América Latina, conheço alguns dados
sobre a Venezuela e não poderia deixar de alertá-la quanto aos erros que
têm sido sistematicamente cometidos.
Como
parte do esforço de mostrar que o governo Chavez deixou a economia “em
frangalhos”, o jornalista José Casado, em matéria publicada em 15/4/2013
(“Economia em frangalhos no caminho do vencedor”) informa que o déficit
público em 2012 foi de 15% do PIB.
Infelizmente, as fontes desta
informação não aparecem na reportagem (apenas uma genérica referência a
“dados oficiais e entidades privadas”!), uma falha primária que nem meus
alunos não cometem mais em seus trabalhos. Segundo estimativas
apresentadas para o ano de 2012 no “Balanço Preliminar das Economias da
América Latina e Caribe”, da conceituada Comissão Econômica para América
Latina e Caribe (Cepal), o déficit foi de 3,8% do PIB, ligeiramente
menor do que no ano anterior, mas muito inferior ao apresentado pelo
jornal.
Caso
o jornalista queira construir a série histórica para os resultados
fiscais para a Venezuela (e qualquer outro país do continente), pode
consultar também as várias edições do Estudio Económico também da
Cepal. Para poupar seu trabalho: a Venezuela registrou superávit
primário de 2002 a 2008: 1% do PIB; 2003: 0,3%; 2004: 1,8%; 2005: 4,6%;
2006: 2,1%; 2007: 4,5%; 2008: 0,1%; e déficit nos anos seguintes: 2009:
–3,7% do PIB; 2010: –2,1; 2011: –1,8; 2012: –1,3.
O déficit é
decrescente, mas bem distante dos 15% do PIB publicados na matéria.
Afirmar que o déficit público na Venezuela corresponde a 15% do PIB tem
sido um erro recorrente, e também aparece na matéria intitulada
“Onipresente Chavez”, publicada na véspera, também no caderno “Mundo” do
jornal O Globo em 13/4/2013. A este propósito, tenho uma péssima
informação a lhe dar: diante de um quadro fiscal tão saudável, o
presidente Nicolas Maduro não precisará realizar ajuste fiscal
recessivo, e terá condições de seguir com as políticas de seu
antecessor.
A
matéria do dia 15/4/2013 possui ainda outros erros graves. O primeiro é
afirmar que existe hiperinflação na Venezuela, e crescente.
Não há como
negar que a inflação é um problema grave na Venezuela, mas O Globo
não tem dispensado o tratamento adequado para informar seus leitores.
A
inflação na Venezuela tem desacelerado: foi de 20% em 2012, contra 32%
em 2008 (novamente utilizo os dados da Cepal). Tudo indica que o
jornalista não possui conhecimento em economia, pois a Venezuela não se
enquadra em qualquer definição existente para hiperinflação – a mais
comumente utilizada é de 50% ao mês; outras, mais qualitativas, definem
hiperinflação a partir da perda da função de meio de troca da moeda
doméstica, situações bem distantes do que ocorre na Venezuela.
Outro
equívoco é afirmar que “não há divisas suficientes para pagar pelas
importações”. A Venezuela acumula superávits comerciais e em transações
correntes (recomendo que procure os dados – os encontrará facilmente na
página da Cepal). Esta condição é algo estrutural, e a Venezuela é a
única economia latino-americana que pode dar-se ao luxo de não precisar
atrair fluxos de capitais na conta financeira para financiar suas
importações de bens e serviços. Isto decorre exatamente das exportações
de petróleo.
O
problema, senhora Sandra Cohen, é que os erros cometidos ao expor a
situação econômica venezuelana não se limitam à edição do dia 15/4, mas
tem sido sistemáticos e corriqueiros. Como parte do esforço de mostrar
que o governo Chavez deixou uma “herança pesada”, a jornalista Janaína
Figueiredo divulgou no dia 14/4 (“Chavismo joga seu futuro”) que em 1998
a indústria respondia por 63% da economia venezuelana, e caiu para 35%
em 2012. Infelizmente, a reportagem comete o erro primário que seu
colega José Casado cometeu: não cita suas fontes.
Em primeiro lugar, a
informação dada pelo jornal é que a Venezuela era a economia mais
industrializada do globo terrestre no ano de 1998. Veja bem: uma
economia em que a indústria representa 63% do PIB é
super-hiper-mega-industrializada, algo que sequer nos países
desenvolvidos foi observado naquele ano, nem em qualquer outro. E a
magnitude da queda seria digna de algo realmente patológico.
Como
trata-se de um caso de desindustrialização bastante severo, procurei
satisfazer minha curiosidade, fazendo algo bastante corriqueiro e básico
em minha profissão (e, ao que tudo indica, o jornalista não fez):
consultei os dados.
Na página do Banco Central da Venezuela encontrei a
desagregação do PIB por setor econômico e lá os dados eram diferentes: a
indústria respondia por 17,3% do PIB em 1998, e passa a representar 14%
em 2012. Uma queda importante, sem dúvida, mas algo muito distante da
queda relatada por sua jornalista. Caso a senhora, por qualquer juízo de
valor que faça dos dados oficiais venezuelanos, quiser procurar em
outras fontes, sugiro novamente a Cepal (Comissão Econômica para América
Latina e Caribe). As proporções mudam um pouco (21% em 1998 contra 18%
em 2007 – os dados por lá estão desatualizados), mas sem adquirir a
mesma conotação trágica que a reportagem exibe. Em suma: os dados
publicados na matéria estão totalmente errados.
O
erro cometido é gravíssimo, mas não é o único. A reportagem ainda
sugere que a Venezuela é fortemente dependente do petróleo, respondendo
por 45% do PIB. Novamente, a jornalista não cita suas fontes. Na que eu
consultei (o Banco Central da Venezuela), o setor do petróleo respondia
por 19% do PIB em 1998, contra pouco mais de 10% em 2012. Como a senhora
pode perceber, a economia venezuelana se diversificou. Não foi rumo à
indústria, pois, como eu mesmo lhe mostrei no parágrafo acima, a
participação desta última no PIB caiu. Mas, insisto, a dependência do
petróleo diminuiu, e não aumentou como o jornal tem sistematicamente afirmado.
A
edição de 13/4/2012 traz outros erros graves. Eu já falei anteriormente
sobre os dados sobre déficit público apresentados pela matéria assinada
pelo jornalista José Casado (“Onipresente Chavez”).
A mesma matéria
afirma que a participação do estado venezuelano representa 44,3% do PIB.
O conceito de “participação do estado na economia” é algo bastante
vago, e por isso era importante o jornalista utilizar alguma definição e
citar a fonte – mas isto é algo, ao que tudo indica, O Globo não
faz. Algumas aproximações para “participação do estado na economia”
podem ser utilizadas, e as mais usuais apresentam números distantes
daqueles exibidos pelo jornalista: os gastos do governo equivaliam a
17,4% do PIB em 2010 (contra 13,5% em 1997) e a carga tributária em 2011
era de 23% (contra 21% em 2000), nada absurdamente fora dos padrões
latino-americanos.
Enfim, no afã de mostrar uma economia em frangalhos, O Globo
exibe números que simplesmente não correspondem à realidade da economia
venezuelana. Veja bem: eu nem estou falando de interpretação dos dados,
mas sim de dados equivocados!
Seria importante oferecer ao leitor de O Globo
uma correção dessas informações – mas não na forma de errata ao pé de
página, mas em uma reportagem que apresente ao leitor a economia
venezuelana como ela é, e não o caos que O Globo gostaria que fosse.
E, por favor, nos próximos infográficos, exibam suas fontes.
Atenciosamente,
Victor Leonardo de Araújo
Professor de Economia da Universidade Federal Fluminense