Brasil: "É o rentismo, estúpidos!"



As manifestações ocorridas no Brasil, nas últimas semanas, reuniram milhões de pessoas com motivações bastante distintas, mas, subjacente a todas, estão uma percepção e um inconformismo crescentes com o fato de que o Estado brasileiro não atende adequadamente às demandas da sociedade como um todo, deixando-as subordinadas aos interesses setoriais mais poderosos que o dominam. 

Nada simboliza melhor tal constatação que a hegemonia dos interesses pró-rentistas na formulação das políticas públicas, refletida na destinação de quase metade do orçamento do governo federal para o serviço da dívida pública (vide o quadro abaixo, baseado em dados do SIAFI).



Efetivamente, com os juros e amortizações da dívida recebendo cerca de 44% do orçamento e a atenção prioritária do governo, além do montante colossal das despesas de custeio de uma máquina pública ostensivamente inchada, os recursos para os investimentos em infraestrutura e nos serviços públicos que interessam diretamente à população são relegados a planos bastante secundários nas prioridades oficiais. 

Para piorar o quadro, na maioria dos casos, apenas uma fração dos investimentos previstos no orçamento tem sido efetivamente empregada, por conta da inércia tecnoburocrática, contingenciamentos para reforçar o sacrossanto superávit primário e outros fatores. Um levantamento feito pela ONG Contas Abertas para o jornal O Globo demonstrou que, entre 2003 e 2012, apenas 39% do orçamento setorial de saúde aprovado pelo Congresso foram gastos. 

Nas rubricas saneamento, transportes e educação, a proporção ficou, respectivamente, em 49%, 61% e 60,5% (O Globo, 29/06/2013).

A preocupação fundamental com a dinâmica rentista ficou evidenciada no discurso da presidente Dilma Rousseff diante dos governadores estaduais e prefeitos das capitais, na segunda-feira 24 de junho, na qual apresentou a sua questionável proposta dos cinco "pactos" (já por si uma das palavras mais desmoralizadas do léxico político nacional) como resposta às manifestações. 

O primeiro deles se referia, precisamente, à estabilidade fiscal, que, geralmente, é um virtual eufemismo para justificar a prioridade dada à dívida pública. 

Como a crise global está demonstrando cabalmente, o sistema de financiamento dos governos via endividamento privado, prevalecente na grande maioria dos países, não atende às exigências das crescentemente complexas e interdependentes economias do século XXI e, se não for reformado, não haverá solução duradoura para a instabilidade financeira global. 

Portanto, cedo ou tarde, os países terão que encarar a sério o desafio de colocar limites na dinâmica rentista e os que tardarem muito poderão ter que fazê-lo sob condições de crise aguda, semelhantes ou até piores que a crise argentina de 2001-2002, que popularizou os "panelaços" como manifestações populares, derrubou dois presidentes e forçou grande parte da população a recorrer a práticas econômicas de sobrevivência, como o escambo.

O Brasil, inegavelmente, se beneficiou da grande valorização, nos mercados internacionais, das commodities que hoje constituem o grosso das exportações nacionais, principalmente, produtos agropecuários. 

Porém, este modelo de "plantation pós-moderna" encontra-se em visível fase de esgotamento, como se depreende, dentre outras evidências, dos sinais de retração econômica da China, a principal parceira comercial do País. 

As manifestações das últimas semanas criaram um novo cenário de demandas sociais, o qual exigirá respostas mais efetivas do que escapismos como o de uma proposta de reforma política apressada. 

Portanto, o momento exige que seja recolocada sobre a mesa uma pauta para a elaboração de um novo projeto nacional de desenvolvimento, envolvendo todos os segmentos da sociedade, o qual, acima de tudo, crie condições para que a formulação das políticas públicas deixe de ser dominada pelos interesses pró-rentistas e passe a ser, em medida significativa, orientada pelo princípio do bem comum.