Espanhol... da gema!

Fui companheiro de fábrica de Juan. A única vez que desfilei em uma escola, foi quando ele ganhou um samba na Arranco e formamos uma ala só de amigos da PETROFLEX.

Grande Juan, parabéns

Paulo Morani 

Rachel Valença

Lá no Centro Cultural Cartola continuam as ações de salvaguarda decorrentes do reconhecimento, em 2007, do samba do Rio de Janeiro como patrimônio cultural do Brasil. Uma dessas ações é a tomada de depoimentos de grandes sambistas.
Não apenas dos grandes sambistas que conquistaram visibilidade na mídia, como Monarco, Nelson Sargento, Dona Ivone Lara. Para nós, grandes são também todos aqueles que dedicaram sua vida ao samba, seja como compositor, puxador, passista, mestre-sala, porta-bandeira, carnavalesco, coreógrafo, pastora, dirigente, mas cuja existência só é conhecida no círculo a que chamamos mundo do samba. Desses, se nós - sambistas - não nos preocuparmos em registrar a vida e os feitos, é possível que o tempo apague a lembrança, o que seria uma perda irreparável para a memória da cultura desta cidade, deste país.
Foto: Acervo Pessoal

Por isso, a gente vai gravando depoimentos, que lá estão à disposição de quem quiser ouvir. E no sábado passado tive a satisfação de entrevistar Juan Antonio Alvarez Mendez, o Espanhol, compositor quinze vezes campeão de samba-enredo na escola de samba Arranco. Não o conhecia a não ser dos créditos nos selos e nos encartes dos discos. E seu depoimento, para minha surpresa, foi um dos mais importantes documentos culturais, um verdadeiro hino ao samba.
Juan nasceu na Galiza, região da Espanha, e só veio para o Brasil aos dez anos. Mas foi ainda lá, nesses primeiros anos de vida, que se tornou portelense. Como? O pai, que viera tentar a sorte no Brasil para fugir da ditadura franquista, mandava para a família as revistas O Cruzeiro e Manchete, para que os filhos fossem se familiarizando com o país onde em breve teriam de viver. O objetivo foi alcançado: ao vir para o Brasil, no final da década de 1950, Juan já conhecia de carnaval e se apaixonara pela então campeoníssima Portela.
Só que - quis o destino - sua primeira casa no Rio de Janeiro calhou de ser na Rua Adolfo Bergamini, no Engenho de Dentro, vizinha à quadra de um bloco que em 1973 viraria escola de samba, e azul e branca, como a Portela! Sem nunca aposentar a paixão portelense, foi no Arranco que Juan teve toda sua vivência de sambista: tornou-se compositor, e dos bons. Assinava seus sambas como Espanhol, forma como era carinhosamente tratado. Mas no Arranco não fez só samba: fez de tudo. Como acontece em escolas desse porte, há carência enorme, o que leva seus aficionados a se desdobrarem em todas as tarefas que se apresentam. Juan foi intérprete, foi diretor de harmonia, trabalhou no barracão, se desdobrou em funções várias.
Foto: Acervo Pessoal

As provas de amor do grande compositor à sua pequena escola são inúmeras. Mas uma merece ser mencionada: ao vencer a disputa de samba-enredo na Unidos da Tijuca, em 1993, com aquele Dança, Brasil, lembram?, por se tratar de uma escola do grupo especial, numa época em que a indústria fonográfica estava no auge, Espanhol esperava o pagamento de seus direitos autorais para realizar o sonho da esposa de trocar os móveis da casa. Mas, quando o dinheiro foi pago, o Arranco estava numa situação tão crítica, sem ter como desfilar, que o compositor não hesitou em aplicar lá todo o dinheiro ganho.
Graças a ele, o Arranco foi poupado, não foi rebaixado. Mas como explicar à esposa que o dinheiro já fora recebido e usado? Afinal, fora nós - sambistas fanáticos - quem mais aceitaria ou sequer compreenderia um absurdo desses?
A casa do Espanhol ficou sem os móveis novos, mas, mais do que a salvação do Arranco, esse episódio pessoal e doméstico se reveste de um incrível significado cultural e do que representa o samba na vida das pessoas. Não só dos cariocas, não só dos brasileiros, mas dos sambistas, que podem ter nascido em qualquer lugar do mundo, até na longínqua Galiza. E comprova que quem ama o samba dessa maneira incondicional e irrestrita e é tocado pelo dom da poesia é capaz de fazer sambas bons como os que nos acostumamos a ouvir com a assinatura do compositor Espanhol.
Copiado do site de Sidney Rezende