O cientista Miguel Nicolelis, responsável do chute inaugural da Copa por um paraplégico, lamenta o descaso televisivo da proeza e critica a politização até da ciência
María Martín
São Paulo
Nicolelis |
Em 1906, o inventor mineiro Alberto Santos Dumont demonstrava para
cerca de 1.000 pessoas que o homem podia voar. Um aviãozinho com forma
de “T” coberto de seda japonesa, com armações de bambu e juntas de
alumínio, se elevou em Paris do solo percorrendo 60 metros em 21
segundos. Aquele dia, a história lhe reservou uma página pela
paternidade da aviação. Um século depois, outro brasileiro procurava a
paternidade de uma nova era tecnológica também em 20 segundos.
O
experimento escapava do dia a dia da plateia: fazer um homem paraplégico
andar. O neurocientista paulista Miguel Nicolelis, de 53 anos, chegava à
abertura da Copa do Mundo
para apresentar um pesado exoesqueleto robótico de plástico e alumínio
que permitiria que um deficiente físico movesse seu corpo apenas
imaginando que era capaz de fazê-lo.
Juliano Alves Pinto, paraplégico há sete anos, apareceu na cerimônia
inaugural do Mundial vestindo o exoesqueleto e coberto pela capa que a
família de Santos Dumont emprestou para a ocasião. Se na época do
aeronauta tivessem existido as câmeras, seria de se esperar que o país
inteiro seguisse a proeza ao vivo. Mas, na era da informação
instantânea, a demonstração de Nicolelis, quando mais de um bilhão de
pessoas estava colada à tevê, foi resumida a três segundos.
Os três
segundos mais polêmicos desta Copa do Mundo até o momento, milhares de
brasileiros se indignaram ao ver tudo aquilo reduzido a uma bola rodando
na grama. Nicolelis culpou a FIFA. Mas a FIFA replicou à Folha de São Paulo
que no roteiro da cerimônia foram concedidos 30 segundos ao experimento
e que o fato de que aparecesse apenas 30 segundos na televisão escapava
de suas competências.
Após anos de trabalho no projeto Andar de Novo,
encarando avanços, deserções na equipe e afiadas críticas de alguns
colegas e jornalistas, a pior batalha para Nicolelis tem sido lidar com a
FIFA.
“Não é para corações fracos”, avisa o cientista. Assim que terminou a
demonstração, Nicolelis pegou o celular e postou no Twitter: “Quem
definiu o teor da demonstração, a duração e a edição das imagens foi a
FIFA. Reclamações sobre esses temas devem ser endereçadas a ela”.
Em
seguida, telefonou para o representante do Governo no Comitê de
Organização Local para saber por que na retransmissão praticamente
ignoraram o experimento, apoiado pelo Governo brasileiro com 33 milhões
de reais e que, segundo o cientista baseado na Universidade de Duke na
Carolina do Norte, seria o primeiro a conseguir movimentos com ordens
dadas pelo cérebro. Ainda não obteve resposta.
“Se essa demonstração tivesse acontecido na abertura das Olimpíadas
em Barcelona, eu duvido que ela não seria mostrada inteira. Porque o
povo espanhol não permitira que isso ocorresse”, afirma Nicolelis em uma
entrevista pelo telefone.
A relação com a FIFA começou no final de 2012 e, pouco depois, teve
início uma série de desencontros. “Em março, nos informaram que não
faríamos mais o chute inaugural, tal qual fora combinado, e que
encaixaríamos a demonstração na cerimônia.
Aceitamos. Depois me
comunicaram que passávamos de um minuto a 30 segundos, e depois a 29.
Fizemos o que a FIFA nos pediu, foi uma demonstração de tecnologia de
ponta. Queríamos mostrar para o mundo um Brasil diferente, o Brasil da
inovação científica, da tecnologia... Foi um ato histórico e simbólico,
nunca antes em uma Copa do Mundo um deficiente participou do chute
inaugural. Qualquer um que entenda de robótica sabe como isso foi
difícil”, afirma o cientista.
Nicolelis não quer falar mais da entidade de futebol e tenta encerrar
o assunto. "Eu não acusei ninguém de nada porque não sou louco, eu só
disse que teria sido ótimo se pudéssemos ter visto tudo, e não entendi
por que só se mostrou o final. E acabo aqui”.
Felizmente para a equipe do cientista, a pouca visibilidade da
demonstração indignou milhares de brasileiros que acabaram por
catapultar a proeza de Nicolelis nas redes sociais e lhe reservaram um
lugar na história. As visualizações dos vídeos do Andar de Novo
dispararam, Francis S. Collins, o diretor do National Institutes of Health, um dos maiores centros de investigação médica do mundo, dedicou um post ao chute telemático que considerou uma mostra das “últimas investigações em neurociência”.
A revista científica Nature Methods dedicou sua capa à investigação de interfaces cérebro-máquina
da qual Niconelis forma parte. Mas, enquanto isso, vários ataques se
reproduziam nas redes sociais. Ex-colegas do cientista e jornalistas e
analistas de ocasião criticaram o investimento público da investigação,
reclamaram que o projeto não era inédito, que o exoesqueleto não era uma
esperança real para as pessoas com deficiência física. Algumas das
criticas chegaram a ser pessoais. “Tentaram politizar até a ciência”,
lamenta Nicolelis.
Em que consiste o exoesqueleto
A pessoa paralisada veste um chapéu especial que contém eletrodos que leem a atividade elétrica produzida pelo cérebro. Para mover o exoesqueleto a pessoa imagina cada uma das fases dos movimentos que deseja fazer: "dar um passo", "virar à esquerda", "chutar uma bola"... Estes sinais cerebrais são recolhidos em um computador dentro de uma mochila, no qual as ordens do exoesqueleto são decodificadas.Uma das críticas ao projeto de Nicolelis era que o cientista não cumpriu o prometido, dado que para exoesqueleto funcionar requeria a implantação de eletrodos no cérebro do paraplégico -em substituição ao chapéu. "O professor decidiu optar por uma técnica não invasiva porque era possível conseguir movimento nas extremidades inferiores sem precisar da cirurgia", explica a assessoria do cientista.
As pesquisas para o desenvolvimento do exoesqueleto começaram em 1999. Os trabalhos foram coordenados pelo professor de robótica Gordon Cheng na Universidade Técnica de Munique, e um grupo de pesquisadores franceses construiu o exoesqueleto. A equipe de Nicolelis se focou na leitura das ondas cerebrais das pessoas e em como usar esses sinais para controlar as extremidades robóticas.
O sistema foi desenvolvido na França e testado no Brasil.
“Existe um confronto político muito grande do qual não formo parte.
Eu sou cientista e queria fazer algo para demonstrar a grandeza deste
país, que se transformou nos últimos 12 anos, e do qual me orgulho
profundamente”, afirma. Nicolellis se identificou como um alvo político.
“Me associam com o Governo e acham que me atingindo atingem o governo
brasileiro. E virei um alvo pessoal de colegas que não quiseram
participar mais do nosso projeto e me atacam pessoalmente, porque
cientificamente não têm como me atacar”, explica. “Nós gastamos menos do
orçamento inicial. O projeto custou 14 milhões dólares (33 milhões de
reais), enquanto um sistema semelhante nos Estados Unidos, só para fazer
um braço, foi investido 70 milhões de dólares. As pessoas não estão
acostumadas, mas a ciência de alto nível custa muito dinheiro”, defende
Nicolelis.
Os “ataques localizados e de uma minoria”, porém, não são de
hoje. “Essa campanha tentando desmerecer nosso projeto começou há um ano
e meio. Não conheço nenhum científico no mundo que tenha sofrido a
pressão que nós sofremos há sete meses [desde que começou a preparação
do chute inaugural]. Antes sequer de ter feito qualquer coisa”.