Tese defendida pelo juiz Sergio Moro, de que réus condenados em primeira instância devem ser mantidos presos, é agora alvo de juristas, depois que advogados a consideraram "inconstitucional"
11
O
ministro Celso de Mello, do STF, considera a medida "inaceitável,
insuportável, um retrocesso inimaginável", pois significaria "extinguir a
presunção de inocência"; Marco Aurélio Mello reconhece a morosidade da
Justiça, usada como argumento para a medida, mas afirma que a solução é
"afastar a morosidade para ter a culpa formada e o princípio da
presunção de inocência mantido"; já para o ministro Rogério Schietti
Cruz, do STJ, com base na Constituição brasileira, não há como se falar em antecipação da execução da pena.
Com
a pressa dos envolvidos nas apurações da operação "lava jato" em
concluir o caso, voltou ao centro dos debates a possibilidade de se
antecipar a execução das penas para depois da decisão da segunda
instância.
A ideia, defendida recentemente em artigo escrito pelo juiz
do caso, Sergio Fernando Moro, e pelo presidente da Associação dos
Juízes Federais, Antônio César Bochenek, não é nova. Ela consta na
Proposta de Emenda à Constituição 15/2011, apelidada de PEC dos
Recursos, — e é duramente criticada pela comunidade jurídica.
A
PEC dos Recursos foi idealizada pelo ministro Cezar Peluso quando ele
era presidente do Supremo Tribunal Federal. O foco era antecipar o
trânsito em julgado das decisões judicias para depois do primeiro
acórdão de segunda instância. Com isso, os recursos ao Supremo e ao
Superior Tribunal de Justiça passariam a ser ações rescisórias, usadas
para desconstituir o trânsito em julgado, e não mais ações de apelação.
Na Comissão de Constituição
e Justiça do Senado, o relator da PEC, senador Aloysio Nunes (PSDB-SP)
apresentou uma emenda e mudou o texto da PEC: a proposta passou a
estabelecer que mandados de prisão possam ser expedidos já depois da
decisão de segundo grau, ou do tribunal do júri, "independentemente do
cabimento de eventuais recursos". A emenda foi aprovada pela CCJ e
substitui o texto original da PEC.
Antecipar a execução é uma
saída posta para dar celeridade à jurisdição criminal e evitar o abuso
das decretações de prisões preventivas. O ministro Gilmar Mendes, por
exemplo, defende que "é preciso ajustar a lei penal ao mundo real". Ele
entende que é a demora na prestação jurisdicional que encoraja juízes a
se arvorar no papel de combatentes do crime e mandar prender réus antes
da condenação.
Mas alguns dos colegas dele discordam. O ministro
Celso de Mello, decano do Supremo, considera a medida "inaceitável,
insuportável, um retrocesso inimaginável". Para ele, aprovar a execução
antecipada "significa extinguir a presunção de inocência".
O
ministro Marco Aurélio, vice-decano da corte, reconhece o problema da
morosidade da Justiça, mas afirma que a solução é "afastar a morosidade
para ter a culpa formada e o princípio da presunção de inocência
mantido".
"Não vejo como ter-se no campo penal uma execução que não seja
definitiva, já que ninguém devolve ao absolvido a liberdade que se
tenha perdido. Ele entrará com ação indenizatória contra o Estado? Temos
que cuidar desse problema da máquina judiciária."
Realidade brasileira
O
"mundo real" a que o ministro Gilmar Mendes se refere é a concessão
inadvertida e indiscriminada de prisões provisórias. É o que mostra
estudo conduzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e
pelo Departamento de Política Penitenciária do Ministério da Justiça
(Depen) divulgado no fim de 2014, com base em dados de 2011.
A
conclusão da pesquisa é que, no Brasil, só é processado quem foi preso
em flagrante e só é condenado quem já estava preso. O levantamento diz
que 65,5% das denúncias recebidas pelo Judiciário tratavam de inquéritos
abertos depois de flagrante. Em 87% dos casos, o réu já estava preso.
Nos inquéritos abertos por portaria, a proporção de denúncias aceitas
com o réu já preso cai para 12,3%.
E quando se trata da
condenação, as cifras são parecidas: 63% dos réus que cumpriram prisão
provisória foram condenados a penas privativas de liberdade e 17% foram
absolvidos. Isso mostra que 37% dos réus que foram submetidos à prisão
provisória não foram condenados a cumprir pena atrás das grades.
Receberam penas restritivas de direitos e medidas alternativas ou a
decisão foi pelo arquivamento do caso ou pela prescrição da pretensão
punitiva.
"Ou seja, o fato de que praticamente quatro em cada dez
presos provisórios não recebem pena privativa de liberdade revela o
sistemático, abusivo e desproporcional uso da prisão provisória pelo
sistema de Justiça do país", conclui o estudo.
Já foi permitido no Brasil a execução provisória das penas. A Lei 8.038/1990, no parágrafo 2º do artigo 27,
estabelecia que os recursos ao Supremo e ao STJ têm "efeito
devolutivo". Ou seja, podem reformar uma decisão judicial, mas não
suspendem seus efeitos.
Em março 2009, no Habeas Corpus 94.408, o
Supremo entendeu que esse dispositivo não se aplica à área penal, pois
isso significaria antecipar os efeitos de uma decisão ainda não
transitada em julgado. Foi declarada a "inconstitucionalidade da chamada
execução antecipada da pena" por violação ao princípio da presunção de
inocência.
O ministro Rogério Schietti Cruz, do STJ, entende que a
decisão do Supremo é "incontornável" dentro da "realidade
constitucional brasileira". Estudioso do assunto, ele acredita que,
enquanto a Constituição Federal disser que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória", como está no inciso LVII do artigo 5º, não há como se falar em antecipação da execução da pena.
A
proposta de Schietti é que se dê nova redação ao princípio da presunção
de inocência, justamente para desatrelá-lo do trânsito em julgado.
Segundo ele, o Brasil é dos poucos países que trata da presunção dessa
forma. "Geralmente, colocam a presunção de inocência atrelada à
comprovação da culpa, ou que todos são inocentes até que se prove o
contrário. Em nenhum diploma se inseriu o trânsito em julgado."
Julgar mais
O
advogado Pierpaolo Cruz Bottini é mais direto. Para ele, a emenda à PEC
é inconstitucional. Bottini é doutor em Direito Penal pela USP e é
professor da disciplina na universidade. Ele analisa que é cláusula
pétrea o dispositivo da Constituição
segundo o qual uma pena só será executada depois do trânsito em
julgado.
Ele concorda com Marco Aurélio: "Em casos cíveis ou
patrimoniais, é possível restituir o bem apreendido inclusive com juros.
Mas é complicado permitir a execução provisória porque não tem como
voltar atrás. Como é que se restitui a liberdade?"
Na opinião de
Bottini, "se é para agilizar a Justiça, que seja julgando". "Conferir
eficiência ao Estado prejudicando direitos fundamentais nunca é a melhor
forma de estruturar o Estado Democrático de Direito."
O advogado
Aury Lopes Jr, professor de Processo Penal da PUC do Rio Grande do Sul,
concorda com Celso de Mello: antecipar a execução é um retrocesso. "O
Supremo colocou a presunção de inocência onde ela deveria estar com o HC
94.408. Já passamos por isso, por que retroceder?"
Na opinião
dele, se o problema é a demora no julgamento, seria mais interessante
aumentar a estrutura do STJ, maior gargalo jurisdicional da atualidade.
"Quando se determina o imediato ingresso no cárcere sem 'cautelaridade',
existe uma equiparação ao tratamento dado ao condenado, pois estamos
colocando alguém para 'cumprir uma pena', em situação igual àquela do
condenado definitivo. E isso é uma antecipação da pena, absolutamente
inconstitucional e inconvencional. Um grave retrocesso civilizatório."
O
presidente da Associação dos Advogados de São Paulo (Aasp), Leonardo
Sica, concorda com Aury Lopes. Segundo ele, "a proposta é descabida e
oportunista, um retrocesso autoritário". A aprovação de uma medida como
essa, avalia Sica, "representará a aniquilação de garantias individuais
duramente consolidadas na história do país".
"O esforço de gerações de
brasileiros comprometidos com a democracia e o Estado de Direito serão
desprezados."
Fonte: http://www.brasil247.com/