O enterro de Frota

Mudamos hoje. Uma mudança lenta, mas profunda. A memória que parecia acomodada no fundo da história recente volta sempre que o país precisa medir suas forças reais. As prisões dos generais envolvidos na articulação golpista do bolsonarismo desmontam, por ora, um arranjo silencioso que acompanhou a vida republicana desde a ditadura: o pacto tácito de que a alta oficialidade ocupa um território protegido, onde a lei chega apenas quando convém à corporação.

​A operação de hoje não seguiu essa cartilha. O Estado agiu com razoável autonomia, e essa autonomia produz efeito político imediato porque encosta a democracia justamente no ponto que sempre lhe faltou coragem para tocar. A história se mexe quando alguém finalmente ousa fazer o que sempre foi adiado e expõe diversas contradições.

​E aqui desenterro o funesto General Silvio Frota para ilustrar essa dinâmica. Figura nefasta que, décadas atrás, tentou transformar a tutela militar em destino nacional, Frota condensou em sua atuação como ministro do Exército, nos anos 1970, a ideia de que as Forças Armadas deveriam comandar o rumo do país sem mediações civis. Em 1977, quando articulou sua movimentação dentro dos quartéis para assumir o controle do regime, deixou à mostra uma ambição que ultrapassava sua própria trajetória e passou a operar como referência simbólica para setores que jamais aceitaram o fim da ditadura.

​A queda de Frota não apagou essa cultura; apenas deslocou seu território e se verteu em recuo tático. O ethos da tutela permaneceu vivo, circulando pelas escolas militares, pelos clubes da reserva e pelas conversas internas em que o país é descrito como uma criança sob vigilância constante.

​A sombra de Frota encontrou, no bolsonarismo, a oportunidade que buscava. Oficiais formados dentro dessa tradição ocuparam posições estratégicas no governo e transformaram a máquina pública em extensão da corporação. A presença militar se transformou num método político sob sombras, criando zonas de influência capazes de tensionar instituições e moldar decisões estratégicas. A convivência entre gabinete e quartel gerou um campo fértil para que a velha lógica de tutela se reorganizasse no presente. O governo Bolsonaro ofereceu discurso, palco e proteção para que a ambição militar voltasse a operar de maneira coordenada.

​O episódio de 8 de janeiro é consequência direta dessa reorganização. A destruição dos prédios públicos, o cerco às instituições e a mobilização de grupos extremistas não nasceram no improviso. Fizeram parte de uma estratégia destinada a produzir instabilidade suficiente para justificar uma investida militar. Aquele dia reuniu elementos que ecoam a tradição representada por Frota: a certeza de que um momento de crise abriria espaço para o aparecimento de uma autoridade supostamente “restauradora”. O fracasso da ruptura não anulou o sentido político do gesto; evidenciou a gravidade de sua preparação.

​As prisões desta manhã atingem esse núcleo com precisão. Elas impactam diretamente setores da caserna que mantinham canais abertos com a política e que se valiam de sua posição para interferir nas instituições. A responsabilização desses oficiais inaugura um deslocamento no equilíbrio histórico entre democracia e Forças Armadas, pois interrompe um ciclo de autopreservação corporativa que atravessou toda a redemocratização. Silvio Frota, como mito interno, começa a perder densidade. A cultura que ele ajudou a sedimentar passa a conviver com um limite até então inexistente: o da lei aplicada sem hesitação à alta oficialidade.

​Esse movimento não encerra a disputa. A relação entre poder civil e poder militar segue permeada de tensões, lealdades ambíguas e memórias que ainda organizam a identidade da corporação. Mas o país entra agora numa fase em que a democracia atua de modo mais incisivo, sem conceder automaticamente a aura de excepcionalidade que sempre acompanhou a farda. Essa mudança é política em sua essência, porque redefine o lugar de autoridade e questiona diretamente a ideia de tutela como forma de governo.

​Essa inflexão pode levar o Brasil a fazer o debate que a transição democrática evitou por conveniência: qual é o papel das Forças Armadas numa república que pretende se reger pela soberania popular? A resposta, ainda em construção, começa a ser moldada por decisões como a de hoje, que tratam o militar não como guardião abstrato da ordem, mas como agente público sujeito à responsabilidade e ao compromisso com o estado de direito.

O que aconteceu hoje expõe a estrutura real da disputa pelo poder no Brasil. A democracia se movimenta quando confronta diretamente os espaços onde a autoridade militar se acostumou a operar com autonomia e silêncio. A ação contra oficiais de alta patente desloca expectativas, reorganiza lealdades e mostra que a condução do Estado depende de decisões civis capazes de atravessar zonas de tensão histórica. Esse movimento projeta outro horizonte para a política brasileira, porque reposiciona a farda dentro do jogo institucional e afirma que o país pode ser administrado sem recorrer às velhas hierarquias que se impunham pela intimidação ou pelo costume.

​O Brasil amanheceu diferente porque tocou, pela primeira vez em muito tempo, na raiz de um problema que perpassa toda a sua trajetória republicana. O dia de hoje não apaga o passado; desestabiliza sua continuidade. E essa desestabilização é profundamente política: desloca hierarquias, abre disputas e revela que a democracia, mesmo frágil, é capaz de medir forças com os fantasmas que insistem em acompanhá-la.

​Que este seja o derradeiro enterro de figuras como Silvio Frota.

Ricardo Queiroz Pinheiro

Bibliotecário, gestor público e doutorando em Ciências Humanas e Sociais (UFABC). Atua em biblioteca pública há 29 anos.