O golpe no Paraguai visto de dentro do palácio presidencial

Deposição de Fernando Lugo era tramada desde 2008 e foi avisada até mesmo pela embaixadora norte-americana

Agência Pública

Nos quatro anos em que ficou no poder, Fernando Lugo foi alvo de 23 tentativas de julgamento político


Na quarta-feira 22 de agosto de 2012, poucas coisas em Assunção, capital do Paraguai, lembravam os dois meses da destituição do presidente em um julgamento-relâmpago que surpreendeu todo o continente. Grupos de homens jogavam dominó na Plaza de la Democracia, ambulantes ofereciam câmbio de dólares aos turistas e estudantes uniformizados iam e vinham dos colégios em casarões coloniais; à parte algumas pichações nos muros chamando o atual presidente, Federico Franco, de golpista – “as paredes falam”, dizia uma delas – a vida seguia seu ritmo normal.

Na sede do movimento Frente Guazú, coalizão de esquerda que integrava o antigo governo, o clima não era muito diferente. Às quartas-feiras o presidente deposto, Fernando Lugo, costuma tirar folga; então não havia ali o costumeiro entra-e-sai de ex-ministros que ainda se reúnem diariamente com o ex-chefe. Foi na última hora que se improvisou a gravação de um “comunicado à nação” transmitido pela internet, uma espécie de continuação do discurso semanal que Lugo, quando presidente, realizava na TV Pública.

Sentado no seu pequeno escritório – do outro lado da rua fica a residência presidencial, ocupada pelo seu ex-vice – e diante da bandeira paraguaia, Lugo estava relaxado, de camiseta vermelha e sandália de couro, brincando com sua equipe e a repórter da Pública, que aguardava para a última de três entrevistas com o ex-presidente.  “Hoje faz dois meses que se executou no Paraguai um golpe de Estado parlamentar… Um golpe de Estado que não levou em conta a democracia participativa, não levou em conta o seu voto, a sua participação, a sua dignidade”, dizia, apontando para a câmera.

Apesar de ter sido o último presidente latino-americano destituído do cargo, em um julgamento que levou menos de 24 horas para ser concluído, classificado como ruptura democrática por organizações regionais como Mercosul e Unasul (União de Nações Sul-Americanas), Lugo permanecia desconcertantemente tranquilo. “Eu o vejo muito bem”, comenta o militar que fazia sua escolta pessoal desde a época na Presidência. “Parece que ele está até menos preocupado…”

Durante quatro anos, Lugo governou com o parlamento mais arisco da América Latina – apenas 3 deputados em 80 e 3 senadores em 45 eram da Frente Guazú – contando com uma frágil aliança com o Partido Liberal de seu vice. “Não tínhamos quadro, não tínhamos apoio político, era só confronto”, resume, melancólico, numa tarde calorenta em sua residência na capital paraguaia. “Quando eles me elegeram em 2008, pensaram que eu seria o bobo deles, mas isso eu me nego a fazer”, diz referindo-se aos liberais, segunda maior força política no país. Entre frases pausadas, Lugo suspira: o poder, de fato, nunca foi totalmente seu. “Eu sabia que iria terminar assim”.

Representante da Teologia da Libertação, Fernando Lugo era conhecido como “o bispo dos pobres” até renunciar à batina em 2006. Bispo da diocese de São Pedro, uma das regiões mais pobres do país, coordenava as comunidades eclesiais de base e trabalhava diretamente com movimentos camponeses e sem terra. Ao optar pela política, foi suspenso pela Igreja Católica, mas seguiu sua trajetória aliando a aura religiosa com um discurso progressista em favor dos camponeses e da redistribuição de riqueza. A popularidade o consagrou e o Partido Liberal, arraigado em todo o país, forneceu a estrutura, abraçando uma oportunidade única de finalmente chegar ao governo, depois de seis décadas; a aliança, no entanto, seria arenosa.

Em abril de 2008, Lugo venceu por dez pontos percentuais, pondo fim a 60 anos de domínio do Partido Colorado, o mesmo do antigo ditador Afredo Stroessner.

Nada de novo

O fim repentino do governo Lugo não chegou a ser uma surpresa – basta ler a cobertura da imprensa paraguaia nos últimos 4 anos. Pouco depois da posse, em agosto de 2008, o termo “juízo político” – versão paraguaia do impeachment – passou a figurar repetidamente, de maneira quase banal, nas sessões do Congresso e nas páginas dos jornais diários. “Eu não tenho medo porque não encontro motivos lógicos, válidos, para que o presidente seja julgado politicamente pelo Parlamento Nacional”, ele declarou, já em fevereiro de 2009, em uma conferência de imprensa.

“Não cometi nem faltei à Constituição Nacional no desempenho das minhas funções”. Na época, não havia nenhum um motivo concreto para um impeachment, além do rumor de que o ex-presidente Nicanor Duarte Frutos tramava sua derrubada com o general Lino Oviedo, líder do partido direitista Unace, homem que tentara dar um golpe de Estado – militar –  em 1996.  Antes mesmo da posse, Oviedo apostava com o ex-presidente Nicanor Duarte Frutos que Lugo “ia durar apenas de 3 a 9 meses no cargo”.

A cada novo escândalo envolvendo o governo, ou Lugo, as duas palavrinhas voltavam à tona. Os partidários do ex-presidente contabilizaram 23 tentativas, por membros do Congresso, de utilizar o “juízo político”. No final de 2009 o senador liberal Alfredo Jaeggli, um dos mais aguerridos promotores da causa, falava abertamente à imprensa sobre um plano para destituir o presidente em seis meses, “antes que se fortaleça”. “Quero que este senhor se vá”, afirmava.

Dentro do partido liberal, pretensamente aliado no governo, o impeachment tinha um apoio de peso: Julio César Franco, o “Yoyito”, irmão do vice-presidente Federico Franco. Yoyito também fez suas apostas quando, na mesma época, surgiram notícias de que Lugo tivera três filhos enquanto ainda era sacerdote, o que gerou novo escândalo político. Yoyito disse a um repórter que o fato era “imoral”, mas não o suficiente para derrubá-lo. “Deve ser um fenômeno mais político”, afirmou. Aproveitando o momento, Federico Franco também falava abertamente sobre sua ambição de ocupar o cargo. “No domingo, fizemos uma entrevista em um café de manhã com o vice-presidente Federico Franco, que mal terminou de expressar o seu apoio a Lugo, nos lembrou que está capacitado para substituí-lo caso ocorra um eventual juízo político”, descreveu o jornalista Nicasio Vera, do jornal ABC Color, em dezembro de 2009, num editorial entitulado “A angústia de Federico”.

“Foi um pesadelo constante”, relembra o presidente deposto. “Trabalhávamos com muitas desconfianças e dúvidas sobre as suas intenções. Mas não havia outra alternativa”.

O governo Lugo desagradava grande parte dos congressistas. “Nenhum governo foi interpelado pelo Congresso tantas vezes quanto o nosso”, diz, suspirando, uma senhora baixinha e gordinha, de olhar firme e expressão cansada. Reconhecida dentro e fora do círculo de Lugo como sua melhor ministra, Esperanza Martinez foi titular da Saúde do primeiro ao último dia de governo. Em entrevista na sede da Frente Guazu, ela tenta lembrar quantas vezes foi prestar esclarecimentos diante dos deputados: “Olha, foram mais de 50 vezes, ao longo dos 4 anos… A cada 2, 3 semanas eu tinha que ir lá explicar gastos em recursos humanos, em tal licitação… Me ofendiam. Uma vez disseram que eu era muito gorda para ser ministra de saúde”.  À frente da pasta, ela foi responsável pela maior – e mais sutil – afronta aos partidos que tradicionalmente governam a política paraguaia: saúde gratuita.

A busca pela universalização da saúde combatia de uma vez duas enfermidades: a corrupção dos funcionários, que guardavam parte da “caixinha” dos hospitais, e o clientelismo político. “Antes você tinha que ser filiado a algum partido para conseguir um leito no hospital, ou uma ambulância. Se tinha um problema de saúde, tinha que ir a um político local ou à sede do partido… O que fizemos foi devolver o serviço de saúde à população sem intermediação de partidos”. No Paraguai, a lealdade ao partido passa de pai para filho. Tanto que o Partido Colorado é um dos maiores, em número de filiados, da América do Sul: quase dois milhões. Já o Partido Liberal tem 1,2 milhão. Juntando os dois, dá quase metade da população total do país, de 6,5 milhões. Pra se ter uma ideia, o PMDB, maior partido do Brasil, tem 2,3 milhões de filiados; o PT tem 1,5 milhão.

Outro membro do governo que enfurecia colorados, liberais e proprietários de terra era o engenheiro agrônomo Miguel Lovera, que assumiu o Senave, Serviço Nacional de Qualidade e Sanidade Vegetal e Sementes em abril de 2010. Seu maior pecado foi decretar a resolução 660, que ditava normas para a aplicação de agrotóxicos, estabelecendo a necessidade de autorização para a realização de fumigações aéreas e terrestres e de avisar aos vizinhos com 24 horas de antecedência, indicando produtos a serem utilizados e grau de toxicidade.

O ex-diretor do Senave também comprou briga com o setor agroexportador, em especial da soja – o Paraguai é o quarto maior exportador mundial – ao aumentar os critérios para  liberação do uso de agrotóxicos e cancelar vários registros cujos processos estavam incompletos. O setor conclamou um tratoraço – protesto em que tratores bloqueariam a estradas do país – para o dia 25 de junho. Não daria tempo.

Em um jogo de xadrez complicado para quem não conhece a política paraguaia, o ex-presidente contava, para não ser deposto, com o inusitado apoio do mesmo Partido Colorado, que não queria um impeachment que resultasse na posse do vice, liberal: “Os liberais nunca tiveram ajuda do Partido Colorado. Sempre tive certeza de eles não aceitariam um juízo político para colocar um liberal como presidente”, revela Lugo. “Os membros do Partido Colorado mesmos me diziam, ‘fica tranquilo, não vai ocorrer nada, eles não têm os votos sem nós…”.

A relação de Lugo com o seu vice era “tensa, para dizer o mínimo”, na visão da embaixadora norte-americana Liliana Ayalde, que enviou mais de 15 comunicados a Washington sobre movimentações em prol de um impeachment, vazados pelo WikiLeaks. Em um país com uma institucionalidade frágil, a embaixada norte-americana sempre foi um dos mais importantes centros de poder – e local favorito para as discussões sobre a destituição do presidente.

“Os tubarões políticos ao redor de Lugo continuam a rondá-lo em busca de espaço e poder”, escreveu Ayalde em 6 de maio de 2009.  “Rumores dão conta de que o golpista General Lino Oviedo, o ex-presidente Nicanor Duarte Frutos, e/ou o Vice-Presidente Federico Franco continuam a procurar maneiras de encurtar o mandato de Lugo. A maioria das teorias se baseia em um impeachment contra Lugo, o que requereria 2/3 dos votos na câmara para fazer a acusação e 2/3 no Senado para condená-lo”, descrevia Ayalde, com precisão. “O resultado desta equação parece ser a própria versatilidade de Lugo e força (que tem nos surpreendido), a capacidade dos seus oponentes de executar um golpe democrático (que esperamos que não nos pegue de surpresa) e o fator do tempo”, concluía a embaixadora.

Minha amiga Ayalde

Início de agosto de 2012. No celular blackberry do já ex-presidente Fernando Lugo brilha uma mensagem carinhosa, enviada de Liliana Ayalde para seu email pessoal. “Espero que você esteja bem. Votos de melhoras”. Lugo conversava com esta repórter no lobby do hotel Tripp, em São Paulo, onde estava hospedado para seguir o tratamento de um câncer linfático. Daí a mensagem de Ayalde.

Substituída na embaixada em 2011 – ela assumira o cargo 4 dias antes da posse de Lugo – Liliana subiu na hierarquia e hoje é responsável pelo Caribe, América Central e Cuba no departamento de Estado de Hillary Clinton. “Ela é minha amiga. Quer dizer, era minha amiga…”, disse Lugo, em tom hesitante. “Bom, ela me salvou. Muitos líderes de oposição iam a ela pedir que me tirasse do poder”.