Já que o Alto Comando Militar insiste em chamar isso que aí está de
Revolução – sejamos generosos: aceitemos a classificação. Mas devemos
completá-la: é uma Revolução, sim, mas de caranguejos. Revolução que
anda para trás. Que ignora a época, a marcha da história, e tenta
regredir ao governo Dutra, ou mais longe ainda, aos tempos da Velha
República, quando a probidade dos velhacos era o esconderijo da
incompetência e do servilismo. Quando até os vasos de nossos sanitários,
as louças de nossos mictórios públicos tinham o consagrador made in
England.
O Brasil foi para a frente, ganhou campeonatos do mundo, firmou uma
presença industrial, subiu ao plano internacional – mas tudo isso é
fruto do comunismo: há de regredir aos tempos da Baronesa, Leopoldina
Railway, das tesourinhas Sollingen, do retrato do Santo Padre concedendo
indulgências plenárias pendurado nas salas de visita.
Lembro o poema de Apollinaire sobre o caranguejo: “recuamos,
recuamos”. E a sensação que predomina no País é esta: um recuo
humilhante que deverá ser varrido muito mais cedo do que os medrosos e
os imbecis pensam. Não se podia esperar caráter e patriotismo dos
políticos: são coisas que a estrutura de um político não pode possuir,
assim como a estrutura do concreto armado não pode possuir bolsões de
ar. Mas dos militares – não há como negar, sente-se patriotismo e algum
caráter. Um patriotismo adjetivado, sem substantivos, que se masturba
com os gloriosos feitos históricos, feitos cada vez mais discutíveis. Um
patriotismo estéril, que não leva a nada, que não constrói nada: lembro
a patriotada do marechal Osvino mandando que os postos de gasolina
hasteassem a bandeira nacional. É quase uma anedota, mas é típico da
espécie deste patriotismo que rege nossas Forças Armadas.
Com algum caráter e algum patriotismo, é possível que os próprios
militares compreendam o mau passo que estão dando, desmoralizando o
Brasil perante o mundo inteiro, e, o que é pior, destruindo o que de
melhor temos como Nação, e como povo: a vergonha.
Não se compreende que os militares, hoje no poder, em nome da ordem
queiram impor tamanho retrocesso. Estúpida concepçã da ordem essa, a de
que a ordem se basta a si mesma. A ordem só é válida quando conduz a
alguma coisa: ordo ducit. Mas a ordem que os militares desejam é uma
ordem calhorda, feita de regulamentos disciplinares do Exército e de
estagnação moral e material.
Até agora, essa chamada Revolução não disse a que veio. As
necessidades do País, que levaram o governo inábil do Sr. João Goulart a
atrelar-se à linha chinesa do comunismo internacional, não receberam
uma só palavra do Alto Comando. Falam em hierarquia, em disciplina, e
consideram a Pátria salva porque os generais continuarão a receber
continência e medalhas de tempo de serviço – à falta de condecorações
mais bravas.
Sabemos que o governo deposto, se realmente enveredou o País para o
caminho do caos, em parte tinha real cobertura dos anseios populares que
o Sr. João Goulart não soube interpretar nem zelar. Esses anseios não
desaparecerão porque o general Fulano depôs o general Sicrano. Afinal, o
Brasil – já o disse aqui – não é um quartel de oito milhões de
quilômetros quadrados. Quadrados são os que desejam fazer do País um
prolongamento do quartel.
Sem medo, e com coerência, continuo afirmando: isso não é uma
revolução. É uma quartelada continuada, sem nenhum pudor, sem sequer os
disfarces legalistas que outrora mascaravam os pronunciamentos
militares. É o tacão. É a espora. A força bruta. O coice.
Que os caranguejos continuem andando para trás. Nós andaremos para a
frente, apesar dos descaminhos e das ameaças. Pois é na frente que
encontraremos a nossa missão, o nosso destino. É na frente que está a
nossa glória.
Carlos Heitor Cony
dia 3 de abril de 1964