Um representa o mundo novo e complexo; o outro é um bobo alegre.
Combateu o bom combate na igreja: padre Beto |
O texto abaixo, de autoria de Matheus Pichonelli, foi publicado originalmente no site da Carta Capital.
Entre os dias 23 e 28 de julho, o Rio de Janeiro sediará a Jornada
Mundial da Juventude. Será a primeira viagem internacional do argentino
Jorge Mario Bergoglio como papa Francisco. A recepção ficará por conta
dos padre-cantores Fábio de Melo, Reginaldo Mazotti e Marcelo Rossi.
Serão os cartões de visita de uma igreja que tenta fazer frente à
guinada evangélica com música, pirotecnia, esvaziamento político e
alienação.
Não é outra a impressão que se tem ao abrir e fechar os jornais da
segunda-feira 20. Pela manhã, fui fisgado pela reveladora entrevista à
Folha de S.Paulo concedida pelo padre Marcelo Rossi.
Nela, o clérigo declarou, entre outras pérolas, que tem como função
“animar as pessoas” durante as celebrações; que os evangélicos “invadem”
(foi esta a expressão) os horários da tevê; que, para fazer frente aos
“rivais”, as comunidades eclesiais de base – pontos de encontro entre o
clero, a periferia e as lideranças locais – são velas que iluminam pouco
em comparação aos grandes santuários (ele comparou a igreja católica a
um time de futebol que, apesar dos limites, consegue vencer uma partida
graças à sua torcida); que o perigo destas comunidades é “cair na
política”.
E cita a justiça do mundo, que tarda mas chega, ao analisar o ranking
de personalidades confiáveis da Folha de S.Paulo, em que apareceria
atrás apenas de Lula e William Bonner, enquanto o bispo Edir Macedo
figurava “lá em 20º”.
Como não era de se estranhar, ele vestiu as vestes do
funcionário-padrão ao se manifestar sobre o casamento gay: “A palavra de
Deus é clara: Deus criou o homem e a mulher. A igreja acolhe o pecador,
mas não o pecado”. Para ele, a adoção de crianças por casais
homossexuais, em discussão em qualquer lugar do mundo, “quebra o sentido
do que é família”.
É o retrato perfeito de uma igreja alienada e alienante. Uma igreja
que confunde fieis com torcida organizada – e a coexistência de credos
com torneio mata-mata – e tem um sonho de consumo: transformar os fieis
em cordeiros passivos, temerosos da destruição da família pelo pecado e
aptos a engolir tudo o que é dito sem grandes questionamentos.
Que bom que esta igreja forme cada vez menos padres, atraia cada vez menos gente, e afaste diariamente tantos fieis.
O padre Marcelo Rossi, enquanto canta, bate palma e sorri – e se
comporta, portanto, como animador de torcida que não sabe por que canta,
bate palma e sorri – parece jogar para o tapete toda a complexidade de
um tecido social cruel. Nesse tecido, uma nova ordem se manifesta aos
poucos, mas é ignorada por uma igreja que se finge de surda, cega e
muda.
Surda porque, em meio a tanta gritaria, não ouve os clamores por paz e a unidade, pilares do evangelho, expressos na vida real.
Clamores que rejeitam a velha dicotomia “nós x eles” – católicos x
evangélicos, gays x família, política x retidão – e pregam a comunhão
não de velhos dogmas, mas de valores, estes cada vez mais associados às
liberdades de escolha e expressão.
Cega porque, ao se distanciar da política, se esquece dos reais
métodos de transformação. O apelo à despolitização, em um mundo de
soluções negociadas, é um acinte à racionalidade. Mas, para o padre
Marcelo, a noção de política é em si nociva; e quanto mais a igreja
pensar grande e se afastar das comunidades já afastadas – as pequenas
comunidades que não lotam um templo nem saem bem na foto – melhor.
Alienado e alienante: padre Marcelo |
O apelo do padre Marcelo à alienação é um grande desserviço: leva o
fiel a acreditar que o afastamento da vida política – portanto
comunitária – é um atalho para moralidade pública.
Não é.
Se as comunidades eclesiais de base se afastaram da vocação social
transformadora não foi por excesso, mas pela ausência de engajamento.
Cantar, dançar e bater palma não moverá montanha nem despertará a
atenção das autoridades políticas, religiosas, sociais e econômicas para
os desafios do novo e do velho século.
O padre Marcelo parece não saber, mas é cobrando, dialogando,
propondo caminhos, e não cantando, dançando e batendo palmas, que se
universaliza a dignidade e a justiça – que não se expressa apenas em um
ranking raso de personalidades do momento.
E muda porque se cala diante das agressões diárias praticadas não
pelo Demônio da Bíblia, mas pelas ruas de todo santo (ou maldito) dia:
as agressões contra quem se expressa e contra quem perde um pouco a cada
dia o direito de existir, de ir e vir, sem jamais exercer a plenitude
de seus direitos civis, políticos, sociais e humanos, enfim.
Cantar, dançar e bater palma podem entreter, mas não religam o humano
ao que lhe é mais caro. Não matam a fome – nem física nem espiritual. E
não será com ovelhas domesticadas, passivas, dóceis, massificadas,
despolitizadas e incapazes de refletir sobre o mundo que a Igreja criará
a ponta para uma fé genuína. Porque fé e transformação não precisam ser
valores incompatíveis para se manifestar.
Não parece ser só coincidência o fato de que, no mesmo dia em que foi
publicada a entrevista com o padre-símbolo de uma igreja encantada
tenha sido anunciada a excomunhão de outro símbolo: o de quem escancara o
descolamento desta igreja de sua própria realidade.
Em Bauru, a cerca de 300 km da capital paulista – e a anos-luz de uma
discussão que o Vaticano se nega a encaminhar – o padre Roberto
Francisco Daniel, conhecido como padre Beto, pagou o preço por ter
afirmado, durante suas pregações, que “hoje em dia não dá mais para
enquadrar o ser humano em homossexual, bissexual ou heterossexual” e
“que o amor pode surgir em qualquer desses níveis”.
A igreja, que leva séculos para digerir um mundo novo, levou dias, horas, minutos para acusar a heresia e o cisma.
Era um fim inevitável: dias antes da excomunhão, o padre Beto já
havia anunciado que deixava a igreja porque era impossível viver o
Evangelho em uma instituição que não respeita a liberdade de reflexão e
expressão e se descolou do modelo de Jesus Cristo, que viveu esses
direitos plenamente e levou as pessoas a pensarem por si mesmas.
“Não é possível ser cristão em uma instituição que cria hipocrisias e
mantém regras morais totalmente ultrapassadas da nossa época e do
conhecimento da ciência”, disse.
Uma instituição, segundo ele, omissa diante de problemas sociais
graves, como o descaso com a educação, com a segurança pública, com o
sistema prisional e um sistema de saúde público que só serve ao sistema
privado. “Se refletir é um pecado, sou um pecador e sempre serei um
pecador”, finalizou.
São duas posturas diametralmente opostas dentro de uma mesma igreja
que tem, na base, uma só ordem: amar a Deus sobre todas as coisas e ao
próximo como a si mesmo.
Uma quer que tudo siga como está; que, em nome da ordem natural das
coisas, quem sofre siga sofrendo em silêncio e descolado da realidade
que pede postura, indignação e transformação. É mais fácil, e menos
perigoso, pular e sorrir cantando que os animaizinhos subiram de dois em
dois na arca de Noé.
A outra pede mudanças, aceita as liberdades e acredita, como dizia
uma música estranhamente desaparecida das celebrações, que comungar é
tornar-se um “perigo”; é unir-se numa “luta sofrida de um povo que quer
ter voz, ter vez e lugar”. Uma música que avisava: se calarem a voz dos
profetas, as pedras falarão.