Mauro Santayana
Os jornais foram para as ruas, na última semana, dando como favas
contadas um prejuízo de 6 bilhões de reais na Petrobras, devido a casos
de corrupção em investigação na Operação Lava Jato. Seis bilhões de
reais que não existem. E que foram colocados no “balanço”, como os
bancos recorrem, nos seus, a provisões, por exemplo, para perdas com
inadimplência, que, quando não se confirmam, são incorporadas a seus
ativos mais tarde.
Não há - como seria normal, aliás, antes de divulgar esse valor - por
trás destes 6 bilhões de reais, uma lista de contratos superfaturados,
dos funcionários que participaram das licitações envolvidas, permitindo
que se produzissem as condições necessárias a tais desvios, dos aditivos
irregularmente aprovados, das contas para as quais esse montante foi
desviado, dos corruptos que supostamente receberam essa fortuna.
O balanço da Petrobras, ao menos quanto à corrupção, foi um factoide. Um
factoide de 2 bilhões de dólares que representa o ponto culminante de
uma série de factoides produzidos por um jogo de pressões voltado para
encontrar, doa a quem doer, chifre em cabeça de cavalo.
Houve corrupção na Petrobras? Com certeza, houve.
Houve necessariamente superfaturamento e prejuízo com a corrupção na Petrobras?
Isso seria preciso provar, onde, quando e como.
E o pior de tudo, é que a maior empresa brasileira apresentou esses
resultados baseada, e pressionada, por uma questionável “auditoria”,
realizada por uma, também, discutível, companhia estrangeira.
Segundo divulgado em alguns jornais, a empresa de auditoria norte-americana PricewaterhouseCoopers teria
feito uma série de exigências para assinar, sem ressalvas, o balanço da
Petrobras, estabelecendo um patamar para a perda com “impairment” e
corrupção muito maior que a real, baseada, nesse último aspecto, não em
dados e informações, mas em números apresentados inicialmente por
delatores, tomados como verdade indiscutível, quando vários destes
mesmos delatores “premiados” negaram, depois, em diversas ocasiões,
peremptoriamente, a existência de superfaturamento.
Essa é uma situação que, se fosse reconhecida no balanço, lançaria por
terra a suposta existência de prejuízos de bilhões de dólares para a
Petrobras com os casos investigados na Operação Lava-Jato, e ainda mais
na escala astronômica em que esses números foram apresentados.
Que autoridade e credibilidade moral e profissional tem a PricewaterhouseCoopers para fazer isso?
Se a Petrobras, não tivesse, premida pela necessidade de responder de
qualquer maneira à situação criada com as acusações de corrupção na
empresa, sido obrigada a contratar empresas estrangeiras, devido à
absurda internacionalização da companhia, iniciada no governo FHC, nos
anos 90, e tivesse investigado a história da PwC, que contratou por
milhões de dólares para realizar essa auditoria pífia - que não
conseguiria provar as conclusões que apresenta - teria percebido que a
PwC é uma das principais empresas responsáveis pelo escândalo dos Luxemburgo Leaks,
um esquema bilionário de evasão de impostos por multinacionais
norte-americanas, que causou, durante anos, um rombo de centenas de
bilhões de dólares para o fisco dos EUA, que está sendo investigado
desde o ano passado; que ela é a companhia que está por trás do
escândalo envolvendo a Seguradora AIG em 2005; que está relacionada com o escândalo de fraude contábil do grupo japonês Kanebo, ligado à área de cosméticos, que levou funcionários da entãoChuoAoyama, parceira da PwC no Japão, à prisão; com o escândalo da liquidação daTycoInternational, Ltd, no qual a PricewaterhouseCoopers teve
de pagar mais de 200 milhões de dólares de indenização por ter
facilitado ou permitido o desvio de 600 milhões de dólares pelo
Presidente Executivo e o Diretor Financeiro da empresa; com o escândalo
da fraude de 1.5 bilhão de dólares da Satyam,
uma empresa indiana de Tecnologia da Informação, listada na NASDAQ; que
ela foi também acionada por negligência profissional no caso dos também
indianos Global Trust Bank Ltd e DSK Software; e também no caso envolvendo acusações de evasão fiscal do grupo petrolífero russo Yukos;
por ter, em trabalho de auditoria, feito exatamente o contrário do que
está fazendo no caso da Petrobras, tendo ficado também sob suspeita, na
Rússia, de ter acobertado um desvio de 4 bilhões de dólares na
construção de um oleoduto da Transneft; que foi acusada por não alertar para o risco de quebra de empresas que auditava e assessorava, como a inglesaNorthern Rock, que teve depois de ser resgatada pelo governo inglês na crise financeira de 2008; e no caso da JP Morgan Securities,
em que foi multada pelo governo britânico; que está ligada ao escândalo
da tentativa de privatização do sistema de águas de Nova Délhi, que
levou à retirada de financiamento da operação pelo Banco Mundial; e
também criticada por negligência em trabalhos de auditoria na Irlanda,
país em que está sendo processada em um bilhão de dólares.
Enfim, a PricewaterhouseCoopers é tão séria - o que com certeza coloca
em dúvida a qualidade de certos aspectos do balanço da Petrobras - que,
para se ter ideia de sua competência,o PublicCompanyAccountingOversightBoard dos
Estados Unidos encontrou, em pesquisa realizada em 2012, deficiências e
problemas significativos em 21 de 52 trabalhos de auditoria realizados
pela PwC para companhias norte-americanas naquele ano.
É este verdadeiro primor de ética, imparcialidade e preparo
profissional, que quer nos fazer crer - sem apresentar um documento -
que de cada 100,00 reais gastos com contratações de 27 empresas de
engenharia e infraestrutura pela Petrobras, 3,00 tenham sido
automaticamente desviados, durante vários anos, como se uma empresa com
aproximadamente 90.000 funcionários funcionasse como uma espécie de
linha de montagem, para o carimbagem automática, com uma comissão de 3%,
de milhares de notas a pagar, relativas a quase 200 bilhões de reais em
compras de produtos e serviços.
Desenvolveu-se, no Brasil, a tese, de que, para que haja corrupção, é
preciso que tenha havido sempre, necessariamente, desvio e
superfaturamento.
Há empresas que fornecem produtos e serviços a condições e preço de
mercado, quem nem por isso deixam de agradar e presentear com benesses
que vão de cestas de natal a computadores o pessoal dos departamentos de
compra e outros funcionários de seus clientes.
Há outras que convidam para encontros e viagens no exterior os médicos
que receitam para seus pacientes medicamentos por elas fabricados. E
outras, ainda, que promovem - ou já promoveram no passado - em outros
países, congressos para funcionários públicos, como prefeitos, deputados
e membros do Judiciário.
O montante ou o dinheiro reservado para esse tipo de “agrado” - que
moralmente, para alguns, não deixa de ser uma espécie de corrupção -
depende, naturalmente, do lucro que vai ser aferido pela empresa em cada
negócio, e do tamanho e potencial de investimento e gasto do cliente
que está sendo atendido.
Em depoimento na CPI da Petrobras esta semana, o ex-dirigente da empresa
ToyoSetal, Augusto Mendonça Neto, afirmou que pagamentos foram feitos a
Paulo Roberto Costa e a Renato Duque, responsáveis pelas diretorias de
Refino e Abastecimento e de Serviços, não para que eles alcançassem um
determinado objetivo - manipulando contratos e licitações, por exemplo -
mas para que não prejudicassem as empresas, já que, em suas palavras:
“o poder que um diretor da Petrobras tem de atrapalhar era enorme.
De ajudar, é pequeno. Na minha opinião, eles vendiam muito mais dificuldade do que facilidade. Na minha opinião, as empresas participavam muito mais por medo do que por facilidades. ”
De ajudar, é pequeno. Na minha opinião, eles vendiam muito mais dificuldade do que facilidade. Na minha opinião, as empresas participavam muito mais por medo do que por facilidades. ”
Outro delator - devido, talvez, à impossibilidade de provar,
inequivocamente, contabilmente, juridicamente, o contrário - o
ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa, já havia voltado atrás, em
petição apresentada no dia 9 de abril à Justiça - corroborando
afirmações das próprias empreiteiras envolvidas - afirmando que as obras
investigadas na Operação Lava-Jato não eram superfaturadas, e que as
comissões de 3% eventualmente recebidas eram retiradas do lucro normal
das empresas e não de sobre preço, negando que ele e Alberto Youssef
tenham recebido listas com as obras e empresas que seriam vencedoras em
cada licitação. “Isso nunca aconteceu”, disse o seu advogado, João
Mestieri, à Folha de São Paulo.
A mesma coisa já tinha sido explicada, didaticamente, em depoimento à
CPI da Petrobras, pelo ex-gerente de implementação da Refinaria Abreu e
Lima, Glauco ColepicoloLegatti, no dia 31 de março, ocasião em que
negou que tivesse recebido propina, que tivesse qualquer conta no
exterior, que tivesse feito transferência recente de qualquer bem para
parentes, dando a atender também que poderia colocar seu sigilo bancário
à disposição se fosse necessário.
Legatti negou peremptoriamente que tenha havido sobre preço nas obras da
refinaria, explicou o aumento dos custos da obra devido a adequações de
projeto e a características como ser a mais avançada e moderna
refinaria em construção no mundo, com uma concepção tecnológica
especialmente desenvolvida que permite a inédita transformação de 70% de
cada barril de petróleo bruto em óleo diesel, e que ela produzirá,
quando terminada, 20% desse tipo de combustível consumido no Brasil -
“não tem superfaturamento na obra. Superfaturamento é quando digo que
algo custa 10 e vendo por 15. Aqui são custos reais incorridos na obra.
Não tem um centavo pago que não tenha um serviço em contrapartida. Não
existe na refinaria nenhum serviço pago sem contrapartida ”, afirmou.
Compreende-se a necessidade que a Petrobras tinha de “precificar” o mais
depressa possível a questão da corrupção, admitindo que, se tivesse
havido desvios em grande escala, estes não teriam passado, no máximo,
como disseram dois delatores premiados inicialmente, de 3% do valor dos
contratos relacionados ao “cartel” de empresas fornecedoras
investigadas.
Mas com a aceitação da tese de que houve desvio automático desse mesmo e
único percentual em milhares de diferentes contratos sem comprovar, de
fato, absolutamente nada, sem determinar quem roubou, em qual negócio,
em que comissão, em que contrato, em qual montante, a Petrobras e a PricewaterhouseCoopers levaram
os jornais, a publicar, e a opinião pública a acreditar, que realmente
houve um roubo de 6 bilhões de reais na Petrobras, que gerou um prejuízo
desse montante para a empresa e para o país.
Isso é particularmente grave, porque, para as empresas, a diferença
entre a existência ou não de sobre preço, significa ter ou não que pagar
bilhões de reais em ressarcimento, no momento em que muitas estão
praticamente quebrando e tiveram seus negócios interrompidos, devido às
consequências institucionais da operação que está em andamento.
Para se dizer que houve um crime, é preciso provar que tipo de crime se
cometeu, a ação que foi desenvolvida, quem estava envolvido e as exatas
consequências (prejuízo) que ele acarretou.
Até agora, no Caso Lava-Jato - que inicialmente era cantado e decantado
como envolvendo quase 90 bilhões de reais - não se chegou a mais do que
algumas centenas de milhões de dólares de dinheiro efetivamente
localizado.
O que não quer dizer que tudo não tenha de ser apurado e punido, até o último centavo.
Essa determinação, que é de toda a sociedade brasileira, não consegue,
no entanto, esconder o fato de que, ao inventar, sob pressão de alguns
setores da mídia, da opinião pública e da justiça, o instituto da
corrupção plural e obrigatória, com percentual tabelado, prazo
determinado em número redondo de anos e meses, para início e fim das
atividades, em operações que envolvem milhares de contratos de 27
diferentes empresas, a Petrobras e a Price criaram uma pantomímica,
patética e gigantesca fantasia.
Pode-se colocar toda a polícia, promotores e juízes que existem, dentro e
fora do Brasil, para provar, efetivamente, esse fantástico roubo de 6
bilhões de reais, investigando contrato por contrato, comissão de
licitação por comissão de licitação, entrevistando cada um de seus
membros, procurando apenas provas lícitas, cabais e concretas, como
transferências reais de dinheiro, contas no exterior em bancos suíços e
paraísos fiscais, quebra de sigilo telefônico, imagens de câmeras de
hotéis e restaurantes, indícios de enriquecimento ilícito,
interrogatórios e acareações, ressuscitando e dando vida aos melhores
detetives de todos os tempos, de Sherlock Holmes a Hercule Poirot,
passando pelo Inspetor Maigret, Nero Wolfe, Sam Spade, Phillip Marlowe, a
Miss Marple de Agatha Cristie e o frade William de Baskerville de O
Nome da Rosa, que não se conseguiria provar - a não ser que surjam novos
fatos - que houve esse tipo de desvio na forma, escala, dimensão e
montante apresentados no balanço da Petrobras há poucos dias.
Delações premiadas - nesse aspecto, já desmentidas - podem ser feitas no
atacado, afinal, bandido, principalmente quando antigo e contumaz, fala
e inventa o quer e até o que não quer.
Mas até que se mude de planeta, ou se destruam todos os pergaminhos,
alfarrábios e referências e tratados de Direito, sepultando a presunção
de inocência e o império da prova e da Lei no mesmo caixão desta
República, toda investigação tem de ser feita, e os crimes provados,
individualmente.
Com acuidade, esforço e compenetração e sem deixar margem de dúvida.
Todos os crimes, e não apenas alguns.
À base de um por um, preferencialmente.
Com o caso do “mensalão” do PT - o único dos “mensalões” julgado até
agora - inaugurou-se, no Brasil, a utilização da teoria do Domínio do
Fato, de forma, aliás, absolutamente distorcida, como declarou, a
propósito desse processo, o seu próprio criador, o jurista alemão
ClausRoxin.
Ele afirmou, em visita ao país, na época do julgamento da Ação penal
470, que “ não é possível usar a teoria do Domínio do Fato para
fundamentar a condenação de um acusado supondo sua participação apenas
pelo fato de sua posição hierárquica. “A pessoa que ocupa a posição no
topo de uma organização tem também que ter comandado esse fato, emitido
uma ordem inequívoca” - afirmando que o dever de conhecer os atos de um
subordinado não implica em corresponsabilidade.
“A posição hierárquica não fundamenta, sob nenhuma circunstância, o
domínio do fato”, comentando que “na Alemanha temos o mesmo problema. É
interessante saber que aqui também há o clamor por condenações severas,
mesmo sem provas suficientes. O problema é que isso não corresponde ao
Direito. O juiz não tem que ficar ao lado da opinião pública”. “Quem
ocupa posição de comando tem que ter, de fato, emitido a ordem. E isso
deve ser provado”.
O que quis dizer Claus Roxin com isso? Que, para que haja “domínio do fato’, é preciso comprovar, de fato, que esse fato houve.
Com a saída meramente aritmética usada no balanço da Petrobras, baseada
em uma auditoria de uma empresa estrangeira que, na realidade, pelos
seus resultados, parece não ter tecnicamente ocorrido, inaugura-se, no
Brasil, para efeito do cálculo de prejuízos, uma outra anomalia, a da
“teoria do domínio do boato”.