Em qualquer país do mundo, por “elite” se entende uma classe, ou
casta, ou grupo dirigente (depende do país) que dispõe das capacidades
tanto econômicas quanto políticas para formular e pôr em marcha os rumos
desse seu país, bem como – e mais importante – que chama para si essa
responsabilidade.
Salvo raras exceções (por exemplo, um Joaquim Nabuco), andorinhas que
nunca puderam fazer verão, o Brasil jamais teve elite. Tivemos e temos,
isso sim, uma classe dominante, o que é bem diferente. Dedicada à
predação e à acumulação, e sem horizonte maior que o consumo
ostentatório para si e para sua descendência.
Tomemos o caso das empreiteiras. Elas são parte importante daquilo
que poderíamos chamar o patrimônio, ou o capital, de desenvolvimento do
país. Se elas vierem a desaparecer, o desenvolvimento econômico do país
será prejudicado (voltaremos a isso adiante).
Acontece que essa (desenvolver o Brasil) nunca foi a razão última de
existir delas. Essas empreiteiras existem, desde sempre, no propósito da
acumulação desenfreada pelas famílias suas proprietárias (a esse
respeito recomenda-se esmiuçar este site),
com espoliação da nação. Quantos dentre os parlamentares e os
governantes deste país não devem às empreiteiras o favor de terem
recebido delas generosas “doações” para as suas campanhas? Quantas
dentre as obras públicas de médio e grande porte deste país não tiveram
as suas licitações previamente combinadas entre as empreiteiras, para
incalculáveis superfaturamentos? (lembrando que, na Lava-jato, os
valores de corrupção divulgados referem-se apenas à propina, não ao
sobrepreço).
Acontece ainda que os corruptores últimos não são os dirigentes das
empreiteiras (esses que foram presos), embora criminosos também. São os
acionistas donos das empreiteiras, de quem os dirigentes são
testas-de-ferro. Mas os donos não se expõem a riscos, então não há como
criminalizá-los. A única punição possível para eles é a supressão do seu
poder de corromper. Foi por esta razão que o Ministério Público pediu à
Justiça que declare inidôneas as empreiteiras, impedindo-as assim de
firmar novos contratos com o poder público.
E o que é esse “Ministério Público” (MP)? Anteriormente à
Constituição de 1988 (CF88), o MP era apenas mais um órgão auxiliar do
Governo. Mas a CF88 entendeu que o MP seria, dali por diante, o defensor
da sociedade. Mais, seria autônomo e independente: seria livre.
A formação de um Ministério Público com liberdade para defender os
interesses maiores da sociedade foi um dos principais avanços da
cidadania em toda a nossa História. Para que algo assim chegasse a ser
conquistado, gente foi sequestrada, presa, torturada, morta e
desaparecida. Cidadania não cai do céu – em especial aqui neste país.
Era inevitável que, mais cedo ou mais tarde, este novo MP se chocasse contra o status quo
histórico da dominação – dominação, diga-se, exercida por um consórcio
entre, de um lado, agentes econômicos (ontem, os senhores de engenho;
hoje, as famílias muito ricas) e, de outro, agentes
político-administrativos (parlamentares, governantes, dirigentes
públicos e, sempre que necessário, juízes).
É precisamente esse choque o que estamos testemunhando agora.
Por quanto tempo (quantos séculos?) o país esperou pelo momento em
que esse consórcio seria deslegitimado? Por quanto tempo o país aguardou
pelo momento em que os acertos escusos entre empresários poderosos e
políticos poderosos, tão normais, tão banais ao longo de toda a nossa
História, viessem a ser escancarados à vista de todos, e tratados como a
atividade criminosa que são? (a bem da verdade diga-se que o governo do
PT tem sua parcela de mérito, por ter rompido com a tradição do
“engavetador-geral” à frente do MP). Trata-se, pois, de um momento que
nos empurra para uma posição ativa, de impulsionar essa
verdadeira revolução que começa a tomar corpo de modo estritamente
institucional. Deveríamos estar celebrando a chegada desse momento,
mas...
Quis o destino que esse momento chegasse junto com a maior crise
política desde a redemocratização do país. A grande mídia, em conluio
com setores políticos e setores econômicos (por exemplo os que querem se
apropriar das imensas riquezas do nosso petróleo), promove até as
últimas consequências uma campanha de ódio para desestabilizar o Governo
recém-eleito, nem que para isso seja necessário desestabilizar também a
democracia. Trata-se, aqui, de um momento que nos empurra para uma
posição reativa, de defender não somente o respeito ao resultado eleitoral mas a própria sobrevivência do Estado Democrático de Direito.
Nessa hora em que esses dois momentos históricos se entrelaçam,
necessitamos mais do que nunca de clareza de princípios e de propósitos,
para que os dilemas conjunturais, de superfície, não venham nublar a
nossa visão dos dilemas estruturais, de fundo.
Seguem-se quatro considerações nesse sentido:
1.) O Ministério Público em breve estará sob ataque, e caberá a todos nós defendê-lo
Aparentemente, a grande imprensa exalta o trabalho do Ministério
Público e do juiz Sergio Moro. Mas isso somente acontece porque ela, de
forma oportunista, se aproveita das revelações parciais das
investigações para denegrir a imagem do Governo (bem como, não
esqueçamos, no intuito de levar a Petrobras e suas imensas reservas de
petróleo a trocar de mãos).
A mídia pode não passar recibo, mas está desconfortável com o ataque
do MP ao caráter predatório da parcela do grande capital no Brasil que
são as empreiteiras. O grande capital opera como clube fechado, com
forte espírito de corpo derivado do instinto de sobrevivência. Em breve –
assim que o Governo deixar de ser o único, ou mesmo o principal, alvo –
essas máscaras cairão. E o chumbo grosso que o Governo recebe, não só
na imprensa como no Congresso, o MP passará a receber também.
O Ministério Público é o principal instrumento de cidadania no aparato do Estado. Defendê-lo dos ataques por parte do status quo da dominação será dever de todos.
2.) Não é ao Ministério Público que cabe distinguir as empreiteiras de seus donos
Como adiantamos, uma eventual falência das empreiteiras significará
dilapidação do patrimônio/capital de desenvolvimento do país. A solução
de retirar dos acionistas controladores a propriedade das suas empresas,
permitindo preservá-las, ainda não está dada, mas poderá ser construída
politicamente. Por “politicamente” entenda-se que essa tarefa cabe ao
Executivo (Governo) e/ou ao Legislativo (Congresso), mas não ao
Judiciário, nem ao Ministério Público. Ao MP cabe zelar pelo cumprimento
da Lei, que é precisamente o que ele faz ao pedir que as empreiteiras
sejam declaradas inidôneas (afinal idôneas para serem remuneradas com
dinheiro público é tudo o que elas não são).
Até aqui o Governo apostou todas as suas fichas em evitar que as
empreiteiras fossem declaradas inidôneas. Ao agir assim ele abdicou do
protagonismo na luta contra a corrupção e, pela sua inação, empurrou o
MP a assumir o papel que originariamente seria seu.
A aposta do Governo passa a ser, a partir de agora, salvar as
empreiteiras por meio dos chamados acordos de leniência. O Governo
parece não se importar que isso acabaria por poupar também a
cultura/mentalidade histórica do país pela qual agentes econômicos e
agentes político-administrativos se sentem à vontade para mancomunar-se
uns com os outros – afinal, se os verdadeiros corruptores não se virem
privados de seus meios de corromper, tal cultura terá sido conservada. E
o país terá desperdiçado aquela que terá sido a sua melhor chance na
História para amadurecer e superar o seu passado de apropriação do bem
público e expoliação da nação por particulares privilegiados.
Deveria ao invés disso o Governo (se de fato comprometido com o
avanço da cidadania) investir na construção de uma solução política para
retirar as empreiteiras das mãos de seus atuais acionistas
controladores. Nem se trataria algo assim de uma intervenção do Estado
no domínio econômico, mas antes de combate ao crime.
Numa situação-limite, o Governo deveria ter a clareza de optar pelo
desenvolvimento da cidadania (onde o ganho será estrutural) ainda que em
detrimento do desenvolvimento econômico (onde a perda será conjuntural,
com retomada mais adiante). Deveria, claro, mitigar essa perda
econômica, sendo proativo e inventivo na construção de alternativas
inovadoras (há sugestões no arquivo para download em PDF ao final do artigo).
Em suma: governando – ainda que sob condições as mais desfavoráveis.
Não pode o Governo, pela espinhosidade do trabalho que é seu, preferir
que o Ministério Público deixe de fazer o dele.
Enfim, sem deixar de enfrentar o atraso ou paralisação naquelas obras
que já estão contratadas (superfaturadas, lembremo-nos), o Governo
deveria regozijar-se com a libertação das obras futuras da praga das
licitações combinadas e do superfaturamento (que é o que se espera que
venha finalmente a ser conquistado).
3.) A conspiração é um fato, mas “conspirismo” não contribui para nada
O aparato histórico da dominação consiste num consórcio integrado, de
um lado, por poderes econômicos e, de outro, por poderes
político-administrativos (poderes de Estado) – assim sendo, o Judiciário
é também parte integrante desse consórcio.
A folha corrida do Judiciário ao longo da História do Brasil não é
nada abonadora. Juízes procuram ser isentos e imparciais ao julgar
questões triviais, mas, quando se trata de julgar questões que envolvam
os interesses dos poderosos, isenção e imparcialidade são mais exceção
do que regra. Por tudo o que se viu até o momento, o juiz Sergio Moro
enquadra-se no rol das exceções.
Absolutamente isento e imparcial ninguém é, somos todos humanos e
carregamos nossas preferências. O que se espera de um juiz é que refreie
suas preferências pessoais, evitando contaminar suas decisões por elas.
Não foi o que se viu na Ação Penal 470, vulgo “mensalão”. Num diálogo
que ficará para a eternidade, as palavras falam por si (segue
transcrição deste vídeo):
Ministro Luís Roberto Barroso – [...] e nem estou explorando, presidente, porque não tenho interesse de polemizar, [...] que esta exacerbação [das penas pelo crime de formação de quadrilha] tenha sido feita para evitar a prescrição ou para mudar o regime de semiaberto para fechado, eu não preciso especular isso [...]
Ministro Joaquim Barbosa – foi feito para isso sim!
Em suma, os precedentes, históricos e recentes, não contribuem em nada para um clima de ponderação.
Nem por isso deveríamos nos esquivar de perceber que a situação atual
é por demais complexa para que nos deixemos levar pela emotividade
simplista do “quem não está conosco está contra nós”.
De forma no mínimo precipitada, o juiz Sergio Moro tem sido pintado
como alguém guiado por uma agenda partidária, predisposto a encontrar
qualquer evidência que permita dar base a um processo de impeachment no
Congresso.
O trabalho do juiz Moro ainda está em fase inicial, as investigações
prosseguem, e ele ainda não emitiu qualquer sentença. Então, lançar-lhe
acusações como “algumas empreiteiras notoriamente culpadas não sofreram qualquer constrangimento” é descabido – ao menos por enquanto. Igualmente: “as conexões históricas de Alberto Youssef com políticos do PSDB do Paraná ficaram de fora das investigações”; “a corrupção na Petrobras anteriormente a 2002 ficou de fora das investigações”; “a CEMIG ficou de fora das investigações”. Cobrar que essas coisas aconteçam está correto, mas, assumir a priori que o juiz seja tendencioso, faccioso ou partidário, não – ao menos até que uma omissão desse tipo venha de fato a transcorrer.
Tudo o que vem até aqui embasando o prejulgamento desfavorável do
juiz Moro (não custa lembrar, um juiz com coragem para enfrentar o
poderio econômico histórico deste país) não passa de uma coleção de
“pistas”. Não que se deva descartá-las de antemão, mas tampouco se deve
permitir que elas envenenem precocemente – pior, equivocadamente – a
imagem do juiz à testa do caso.
Assim, foi levantado que a esposa de Moro já trabalhou para o PSDB, e que seu pai foi um ferrenho antipetista (segundo este relato).
Isso pode até indicar as preferências pessoais do juiz, mas não indica
que ele vá se deixar contaminar por tais preferências na hora de julgar.
E chega a ser risível que se tenha levantado que Moro depôs no contexto
de um processo por corrupção contra um ex-prefeito de Maringá do PSDB,
uma vez que comparecer quando arrolado como testemunha para responder
perguntas que lhe serão feitas em juízo é dever de todo cidadão.
Muito mais sérias são as acusações de forçar delações, inclusive com a
pesada adjetivação de “tortura” (tão cara a nosso passado recente que
não deveria jamais ser banalizada). Acontece que o instrumento da prisão
temporária é um dispositivo constitucional a serviço da Justiça, ou
seja, é uma ferramenta legal à disposição dos juízes para que estes
façam o seu trabalho (o mesmo se pode dizer das conduções coercitivas).
Trata-se, aliás, de um dispositivo extensivamente utilizado quando os
suspeitos pertencem às camadas mais pobres da população (ver esta matéria, da qual se reproduz a chamada: “Mais
de 40% dos encarcerados brasileiros são presos provisórios que têm as
vidas destruídas mesmo quando inocentes, antes de qualquer processo
legal”).
Muitos se insurgem contra as condições carcerárias dos presos – como
se fossem somente aqueles presos na Polícia Federal de Curitiba, e não a
totalidade da população carcerária do país, a se verem submetidos a
condições cruéis e desumanas. A lógica da dominação agora se mostra
chocada ao ver o Estado tratar dominadores de modo idêntico ao que
sempre tratou os dominados (a propósito, as condições na carceragem da
PF em Curitiba são significativamente “melhores” – menos piores... – que
na imensa maioria dos presídios do país; há banho quente, por exemplo).
O juiz cometeu um deslize ao chamar de “intolerável” o encontro do
ministro da Justiça com advogados das empreiteiras. Mas, com alguma boa
vontade, isso pode ser deixado na conta das pressões a que ele se vê
submetido por se bater contra adversários tão poderosos.
Em todo esse contexto, a questão mais grave é a dos vazamentos
seletivos. Um parêntesis: bem lá atrás, por ocasião da operação
Satiagraha, os “desencontros” (chamemos assim; essa é uma história
obscura que ainda está por ser contada) entre, de um lado, as
investigações pelos delegados da Polícia Federal e, de outro, o modo de
lidar com a PF adotado pelo Governo, acabaram levando a um fosso de
incompreensão e desconfiança mútuas que envenena as relações até hoje. É
óbvio que absolutamente nada justifica que delegados atuem
partidariamente contra o Governo, mas ventos foram semeados e
tempestades estão sendo colhidas.
É certo que cabe também ao juiz Moro e ao procurador-geral Rodrigo
Janot coibir os vazamentos seletivos, mas essa é uma tarefa delicada
também para eles, afinal a PF é uma outra instituição, sem subordinação
hierárquica. Não obstante, não ter sido nenhum delegado vazador preso ou
processado não quer dizer que nada tenha sido feito.
A febre do “conspirismo” se volta também contra o Ministério Público
(lembrando tratar-se de uma instituição cujo propósito é a defesa da
cidadania). Acontece que o MP investe contra as empreiteiras porque esse
é o seu papel e a sua obrigação (fazer valer a Lei), não para sabotar
deliberadamente a economia e assim inviabilizar o Governo. Ou ainda,
quando procuradores viajam aos Estados Unidos para buscar cooperação
junto a seus pares no sentido de aprofundar as investigações, isso não
quer dizer que eles foram lá para subsidiar os promotores americanos
para acusar a Petrobras.
Outro parêntesis: nada do que está sendo postulado aqui significa que
o Ministério Público seja uma instituição “perfeita”. Longe disso:
basta lembrar o caso do MP de São Paulo, que não apenas omitiu-se da
investigação do escândalo do superfaturamento dos trens e metrôs (o
chamado “tremsalão”) como a obstruiu.
Do juiz Moro, do procurador-geral Janot e, muito em breve, também do
ministro do Supremo Teori Zavascki, importa, mais ainda que
imparcialidade e isenção, que deem conta de alcançar a dimensão
histórica do momento que o país atravessa, e do seu papel nele. E que
estejam à altura de tamanho desafio.
Enfim, o Governo, a cidadania e a própria democracia já têm inimigos
reais demais para precisarmos ficar arrebanhando novos, prejulgando à
primeira desconfiança e acusando dolo onde muitas vezes só há indícios.
Pressionar e cobrar é legítimo, e profilático. Mas minar a credibilidade
daqueles que deveriam estar trabalhando a favor do avanço da cidadania,
e que até prova em contrário estão, é ilógico.
4.) Esse Ministério Público da Lava-jato é o mesmo Ministério Público a quem compete defender a democracia
Está evidente aos olhos de todos (todos aqueles que se dispõem a ver)
a escalada da campanha de ódio para desestabilização do Governo. É
obrigação de todos aqueles defensores do Estado Democrático de Direito
prepararmo-nos para dias piores, que certamente virão.
Existe uma instituição cuja missão é defender a democracia: é o mesmo
MP que investiga a Lava-jato e que pede que as empreiteiras sejam
declaradas inidôneas e assim impedidas de celebrar contratos com o poder
público.
Reza o artigo 127 da Constituição (grifo nosso): “O Ministério
Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do
Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.
Pois já passa da hora do Ministério Público sinalizar para a nação que não tolerará a desestabilização do regime democrático.
Inexiste qualquer fronteira clara entre aquilo que seja liberdade de
manifestação e expressão (“sentar o pau” no governo, qualquer governo, é
um esporte universal e milenar da Humanidade, e naturalmente não deve
ser restringido) e aquilo que seja desestabilização intencional da
democracia. Pois essa fronteira precisará ser delineada, e aqueles que a
ultrapassarem precisarão estar cientes de que aquilo que fazem deixa de
ser liberdade de manifestação e expressão e passa a configurar crime. A
responsabilidade por delinear essa fronteira é do Ministério Público,
de ninguém mais. E esse é um trabalho que deve começar o quanto antes –
antes que se torne tarde demais para fazê-lo.
Uma firme sinalização à sociedade de que o Ministério Público
encontra-se atento, atuante e diligente na defesa do regime democrático
seria, no delicado momento que atravessamos, muito bem vinda para
desanuviar, ao menos um pouco, o ambiente carregado.
Viva as instituições que se insurgem contra a predação histórica do Brasil. Viva o Ministério Público.
Viva a Petrobras. Viva o futuro do país.
Viva o povo brasileiro. Viva o Brasil.
Ruben Bauer Naveira tem 52 anos, é pai de dois filhos, tricolor de coração e cidadão brasileiro.